quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Efeito Ditadura

É com profundo pesar que inicio esta crítica. Profundo pesar principalmente em função do grandioso Vianinha e do histórico Opinião, um espetáculo que reuniu a força e a coragem de alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros e que realizou um movimento de vanguarda frente “ao amor e a flor” da bossa nova e de resistência à ditadura. O espetáculo que lançou Maria Bethânia.
Infelizmente no programa de “Outra Opinião” a peça referida acima é citada pelo grupo Nós do Morro como inspiração deste novo “desespetáculo”.
O pensamento que me vem à cabeça ao assistir tal empreitada, é que o efeito ditadura se consolidou da forma mais maléfica que poderia dentro da nossa sociedade, criando uma classe teatral medíocre. Realmente continuamos sem história, pois realizar um espetáculo tão raso citando uma obra tão magistral dos anos 60, significa o que o Caetano vociferou em pleno festival da canção: “Vocês não estão entendendo nada. Vocês não estão entendendo nada...” No Rio de Janeiro o teatro se tornou sinônimo de Sai de Baixo, o cinismo das platéias e das peças que só se interessam em fazer piada com as maiores mazelas de nossa civilização fez com que o teatro carioca perdesse de fato toda sua força política.
A peça começa com a canção chave do Opinião, de 64, com todos os atores reunidos no centro do palco, no final da música uma senhora de seus quase 70 anos faz uma relato de sua vida, forçando uma comicidade através de seu português ruim, a típica linguagem de moradores de favela, e de palavrões de baixíssimo calão, o humor sobre a ignorância que tanto tem agradado as classes mais abastadas do Rio de Janeiro, que a pouco tempo fizeram o sucesso de Tati Quebra Barraco nas boates dos burguesinhos da zona sul.
O Opinião trouxe do morro o que havia de melhor dele, trouxe Zé Kéti, trouxe verdadeiros poetas do cotidiano das comunidades excluídas, para exaltá-las. Mas o Nós do Morro infelizmente faz o jogo contrário ao trazer o pior, como por exemplo, o Baile Funk, em que uma das músicas repetidas tinha a o seguinte refrão: “Ih! senhor não tem banheiro pra fazer nem xixi, nem coco”. O que falar de uma peça dessa? Que ainda tem o descaramento de dizer em seu programa: “Sem levantar bandeiras ou definir regras e exceções, este espetáculo abre as cortinas para a reflexão, expõe sob os refletores a multiplicidade do ser, transpõe para o palco a voz de todos nós que ainda vivemos sob a mira de tantas ditaduras.” Quanta pretensão! Absolutamente nada disso foi realizado. O que vemos é um espetáculo amarrado à clichês do morro, do favelado que não mostra o valor do morro.
Outra cena de enlouquecer “um ser pensante” é quando a montagem se refere ao amor, num jogo em que os casais, para ilustrar o fato do ser amado ser a prova de qualquer noção de higiene, colocam a mão em partes intimas e fedorentas ou sujas, como o nariz, o anus e etc e dá para o outro lamber, cheirar, chupar e etc. Isso é pelo menos regressão a fase oral, francamente! Dizer que um espetáculo desses se inspirou em Vianinha é um ultraje. São ações vazias, para provocar riso fácil.
Salvam-se as músicas do espetáculo, tirando as do baile funk.
No programa “culpam” Paulo Giannini e Kadu Garcia pela escrita do desespetáculo, e a dramaturgia foi construída a partir das histórias dos próprios atores e de composições musicais de Lirinha, Zé Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Pedro Luis, Marisa Monte, Céu e outros.
Um único momento de coragem real da peça foi uma cena que abordava o abuso sexual de uma menina pelo pai, mas logo a questão é esvaziada pela cena seguinte, em que o pai procura uma prostituta e ela fica gemendo gritando papai, mais uma vez voltamos ao riso para abafar o pensamento e o contrangimento.
A última do programa: “Portanto pedimos licença a João do Vale, Zé Kéti, Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Porto e Augusto Boal para darmos a nossa Outra Opinião”.
LICENÇA NEGADA!!!! Afinal isso não tem nada de Opinião.

Até que Enfim Hamlet

“Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.
E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga as idéias que deveriam permanecer divinas; pois longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.”
Antonin Artaud
in, O teatro e seu duplo, pg. 03.

Somente um homem absolutamente impregnado de seu próprio tempo, pode ultrapassá-lo. Assim foi Shakespeare, eternizado por uma obra que vence séculos e que provavelmente vencerá milênios, pois foi um autor que conseguiu tocar numa matéria humana tão primordial que perpassa existências distintas em tempos distintos.
Hamlet é acima de tudo uma peça que avança brutalmente sobre a condição existencial do homem, uma obra que não se fecha em si mesma, e que faz de seu personagem um mito. Afinal, essa natureza questionadora em relação ao sentido de nossa própria vida e morte e sobre os atos que nos circundam e que nos move a agir, experienciamos em nossa vida, em nosso cotidiano e faz parte da condição do homem contemporâneo.
Artaud construiu um conceito de crueldade como “uma ação levada ao extremo...rigor, aplicação e decisão implacáveis”(ibidem:pg118), onde a cena era o espaço de atuação. Portanto acredito que o estudo do texto no exercício da encenação realizado pela companhia dos Atores em Hamlet.com entra em consonância com a proposta teatral de Antonin Artaud, de um teatro que se realiza através da encenação. No momento em que se propuseram realizar uma experimentação da obra, uma “autópsia” em suas próprias palavras eles alcançaram uma qualidade simbólica que corresponde a riqueza do seu objeto de estudo, que abre os caminhos para a vastidão dos infinitos significados e implicações do texto.
Sem abrir mão da contemporaneidade desde do título, afinal Ensaio.Hamlet é uma forma que se assemelha aos endereços da internet, a ferramenta mais avançada e utilizada de comunicação globalizada, uma tecnologia que mudou a maneira do homem existir. A encenação não se estabiliza num só momento histórico, fazendo esboços em tempos e em lugares diferentes. Na cena em que se encadeia a morte de Ofélia, a rainha canta um Blues que nos leva ás margens do Mississipi, e a jovem entra espalhando baldes pelo espaço para as goteiras, suas lágrimas infindáveis pela morte do pai e pela tragédia vivida com Hamlet, logo em seguida ela se afoga depois de despejar em si os litros de um garrafão de água, um pequeno exemplo da espetacular qualidade e quantidade de símbolos que a companhia consegue desenvolver através de ações intensas, como quando Laertes e Hamlet brigam encima do túmulo de Ofélia e esta é um pedaço de carne cru passado a ferro pelos dois. O ferro e carne têm um significado que extrapola conceitos factuais e lança poética e metafisicamente os espectadores numa sensibilização que não conhece padrões pré estabelecidos.
Ao assistir a encenação de Ensaio.Hamlet vejo a mais profunda cumplicidade entre texto e encenação, infinitamente maior que qualquer montagem que se diga fiel ao texto, pois todas as inserções e colagens propostas pela companhia só aumentaram a força poética e a multiplicidade de possibilidades que a obra abrange, pois ela é política, psicológica, histórica, drama familiar, tudo ao mesmo tempo.
Assim como é um texto para ser relido diversas vezes ao longo da vida, esta montagem é deliciosa de se ver e rever, pois não é consumível na sua totalidade, assim como o texto de Shakespeare ela deixa lacunas e que a cada novo testemunho terá um outro preenchimento por parte do espectador. Acredito que ao realizá-la repetidamente a própria experimentação se enriquece ainda mais, como um vinho que amadurece a cada ano.
Definitivamente toda a magia do universo de Hamlet está presente na montagem da Cia dos Atores. E o melhor, os realizadores de tão inteligente encenação, colocam o espectador num espaço de ser pensante, criador e articulador da história e dos símbolos propostos por eles em sua decodificação das suas experiências e ações, fato raríssimo no teatro carioca, que vêem colocando o espectador cada vez mais no lugar de macaco de auditório.

A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto

A descrição da cena inicial de A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto não trará à mente do leitor o potencial de impacto que a abertura do novo espetáculo infantil da Cia. de Teatro Artesanal pode originar no espctador. Mas para a plateia, dividida entre crianças e adultos, presente no Teatro do Jockey ficou evidente a potencialização estética que uma combinação coerente e harmônica entre os recursos teatrais e a música é capaz de resultar. A pantomima dos atores, a luz que colore o espaço e a melodia de Prokofielv presentes no prólogo da narrativa marcam o estilo predominante na encenação e torna-se o principal atrativo e diferencial que o espetáculo tem a oferecer.

Com um caráter gótico (segundos os diretores Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves, como uma referência aos filmes de Tim Burton), a peça narra a história de um Príncipe, que, ao nascer com rosto num reino onde todos são desprovidos do mesmo, é aprisionado na torre do castelo por seus pais. Lá ele passa sua infância, tendo contato apenas com sua ama e contando com visitas esporádicas de seus pais.

O diálogo sede lugar para a narração em off e trabalho de corpo dos atores, o que sempre é uma troca delicada. Em A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto, porém, o negligenciamento do texto não se torna uma ressalva; a Companhia, aliás, ao optar por tal decisão, valoriza o visual e a diversidade de encenação ao utilizar bonecos, manipulado pelos próprios atores, e máscaras – que, de cor branca, contrapõe com o preto dos objetos e figurinos da peça e, por fim e não à toa, tende a ser o elemento mais destoante em meio à escuridão do ambiente.

A dramaturgia é que acaba se enfraquecendo à medida que o espetáculo avança. Enquanto que o uso de bonecos e o impacto inicial que a plasticidade da peça gera no espectador compõem um primeiro ato rico e atraente, o crescimento do Príncipe, realizado de maneira questionável por trazer o rosto do ator em cena e romper com o negro absoluto que ocultava a face dos atores, delimita não somente a mudança de ato, mas também quebra o ritmo que a narrativa possuía até o momento. Ainda que reserve espaços para pequenas surpresas, a prolixidade e o desfecho vago recebem, inevitavelmente, um peso no saldo geral do texto.
Mas A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto é imagético. As imagens que permanecem na lembrança ao fim do espetáculo são maiores que os deslizes do texto - ou é possível se esquecer da cena do Príncipe, ainda criança, brincando com uma borboleta? Se a fala desaparece, a imagem precisa ganhar forma. E assim o espetáculo se sustenta.
Jefferson Ribeiro

A MULHER QUE MATOU OS PEIXES...E OUTROS BICHOS, comemoração e memoração.




A MULHER QUE MATOU OS PEIXES...E OUTROS BICHOS, comemoração e memoração.
por Alessandra Colasanti
julho de 2009

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança nem bicho sofrer.”
Clarice Lispector


“A mulher que matou os peixes... e outros bichos”, em cartaz no teatro Oi Futuro, no Rio de Janeiro, é uma peça infantil baseada na obra de Clarice Lispector, que tem o livro “A mulher que matou os peixes” como ponto de partida. Mas não é só isso. A respeito dos outros bichos mencionados no título sugiro duas leituras imediatas. A primeira literal: além da mulher, que é a própria autora, e dos peixes, a peça traz à cena diferentes tipos de animais como cachorros, galinhas, gatos e macacos. E a segunda metafórica: outros bichos significando todo o resto, ou seja, tudo o que não é “A mulher que matou os peixes”, tudo o que foi agregado ao livro, tudo o que estava fora dele e foi convidado a entrar. Este é um trabalho de entroncamentos.

O espetáculo estruturou-se como processo colaborativo a partir de uma iniciativa da atriz Mariana Lima, em cena ao seu lado os atores e bailarinos Renato Linhares, e Luciana Froés. Cristina Moura é a diretora. Isabel Muniz assina a dramaturgia e adaptação, Paola Barreto os vídeos, Enrique Diaz a iluminação, Lucas Marcier e Fabiano Krieger a direção musical, com colaboração de Felipe Rocha, Mari Stockler a direção de arte e cenografia, Marcelo Olinto os figurinos. E por fim, Mariana Lima, Renato Linhares, Luciana Fróes, Cristina Moura e Daniela Fortes, também assistente de direção, assinam juntos a criação do espetáculo, firmando e confirmando o processo de criação coletiva.

Um trabalho de entroncamentos baseado em originais de Clarice Lispector. A partir de sua literatura funda-se um edifício criativo atravessado, percorrido, cruzado por inúmeras referências, onde diferentes olhares se encontram e se fundem. Potencializando, transformando, diluindo, multiplicando, e redimensionando as partes e o ponto de partida. Um palimpsesto onde nada se apaga. Onde a soma trama e edifica teias e camadas de significados. Trata-se de um trabalho de adição, mais do que de transposição. É possível distinguir o eco de diferentes obras da autora, além do livro homônimo, mas há mais do que isso. À voz da autora somam-se o campo criativo, o imaginário e o vocabulário estético dos artistas envolvidos. Um bicho de infinitas cabeças, caudas, filhos, filhotes e também sombras.

Os atores materializam o universo de brincadeiras infantis, onde ações físicas e diálogos misturam imagens e falas surgidas em sala de ensaio a fragmentos de textos e idéias presentes na obra original. O cenário embora neutro, não descritivo, faz lembrar um quarto de criança. Diversos objetos e instrumentos coloridos dispostos sobre o palco revestido de branco remetem a uma mistura de baú de brinquedos, aconchego doméstico e mundo dos sonhos. Almofadas multicoloridas à beira do palco são destinadas aos mais pequeninos, que ficam assim bem próximos da cena, praticamente dentro dela. Os vídeos e iluminação conferem agilidade e lirismo à cena, bem como os números musicais executados pelos próprios atores, que compõem uma banda de rock mirim, com baixo, guitarra e mini-bateria. O figurino em sua heterogeneidade e cores fortes lembra as partes móveis de um brinquedo plástico de armar. A interpretação é coloquial, caseira, casual, convidativa. Os atores representam a criança que existe dentro de todos nós, longe de qualquer espécie de modelo caricatural de comportamento infantil e, ao mesmo tempo, despudoradamente infantis. Adultos brincando de criança, no melhor sentido da palavra brincar. Por sua vez, as palavras caseiro, convidativo, quarto, baú e dentro falam muito aqui. Não à toa a escritora aparece em cena escrevendo. Escrever é um ato íntimo. É o baú de brinquedos do adulto, onde bonecas, carrinhos, e massas de modelar são substituídos por sintagmas, adjetivos, verbos, substantivos e outras aflições. A linguagem é a brincadeira.

A não linearidade da peça se justifica conceitualmente, e extrapola a linguagem contemporânea enquanto recurso estilístico. A mecânica da mente é por excelência fragmentada. A causalidade não passa de uma construção, de uma artificialidade. A estrutura em estilhaços da peça reflete e elabora simbolicamente o ambiente íntimo, portanto, do imaginário, do inconsciente e da memória. Assim, displicentemente a peça abre uma porta, ergue uma ponte, nos religa a essa instância velha conhecida de todos nós, o passado. Esse lugar de projeção das primeiras descobertas. Descobrir é ampliar o mistério. Quanto mais se sabe mais se deixa de saber. O processo de formação do sujeito é um laboratório de encantamentos, paradoxos e angústias. Formar não é adquirir conhecimento, não é um ato de preenchimento, é um ato de alargamento, e alargar dói. Não é uma caixinha onde se colocam coisas até não caber mais. Os limites desse percurso ampliam-se a cada descoberta. O que se ganha é também o que se perde. Cada aquisição vem acompanhada de um buraco, e nunca se chega lá. Aprender é crescer, e crescer é morrer, e a criança também morre a cada instante, e ela sabe disso. Portanto, o tema da morte presente no título e em toda a peça mostra-se pertinente, e funciona, de um modo bastante particular, como enredo dramático.

A estrutura narrativa da peça se divide entre manifestações no tempo presente, com ações físicas, brincadeiras e diálogos, e conteúdos narrativos referentes ao passado, onde os atores contam histórias do que já não é, do que já foi, especialmente de animais de estimação que se foram. A ecenação trabalha a um só tempo o discurso visual, o dialogal e a prosa, com pinceladas de música ao vivo.

A narratividade traz consigo a noção de memória. A memória também não é o lugar do acúmulo. A memória é o lugar da perda. Na luta contra esse dínamo devastador criamos e recriamos nossas próprias histórias e lembranças. A memória é o nosso quartinho escuro de auto-ficção. Memória é morte, é apagamento do ser, de seu percurso, e é vida, porque viver é desaparecer aos poucos. É assim, o lugar da solidão, não da solidez. Por isso a gente escreve, por isso a gente lê, faz teatro e vê cinema, enche a cara e se apropria de histórias alheias, para tentar preencher esse oco sem fundo e sem parede, para tentar gotejar qualquer coisa no vazio, para ver se faz barulho, para ver se faz sentido. A angústia diante da existência surge como tema central na obra de Clarice, abordada, geralmente, a partir de fatos comezinhos, ordinários que abruptamente se transfiguram em fenômenos metafísicos . Como o gigantismo epifânico de um ovo, de uma barata ou de um passeio de bonde. Esse sentimento “da dor do mundo” está presente o tempo todo no espetáculo, equilibrando-se entre a beleza e o abismo dos pequenos fatos da vida.

Para além de suas camadas mais profundas, a peça é divertida e brincalhona. O caráter festivo da encenação parece celebrar esse processo de perda permanente que é a vida. Comemoração e memoração. E no meio dessa festa com cheiro de jujuba e balão explode o vocabulário estético, a linguagem.

Assim como os textos de Clarice, a peça está isenta de qualquer traço moralizante. A própria linguagem atua como antídoto neste caso. Num contexto hiper fragmentado a causalidade que poderia fundamentar um fecho moral, porque persuasiva por natureza, não acontece.

As percepções do espetáculo se sucedem como em um painel multidimencional, onde os elementos podem ser organizados de acordo com a experiência pessoal de cada espectador. Esse caráter de obra-aberta é multiplicador, pluralizante. Abre sentidos ao invés de fechá-los. Porém, este mesmo aspecto que representa o maior mérito do trabalho, talvez seja fonte também de sua fragilidade. A peça se inicia de forma mais irregular, porque mais abrangente, para aos poucos afirmar seu desejo.Porque uma obra é um ser desejante, ela fala, ela aponta, ela quer. E no momento que um propósito se afirma é como se do caos e dos cacos, e junto com eles, sem deixa-los para trás, subitamente a peça alçasse vôo, se intensificasse, como se ilhas de sentido se avultassem do tablado. É curioso notar como, nos trechos onde a narrativa linear se faz ligeiramente mais presente, onde se distinguem mais claramente pequenas historietas, o espetáculo ganha densidade cênica e dramática. Especialmente nas passagens onde figuram a macaquinha Lisette e a Galinha, por exemplo. Então o que coloco aqui é mesmo uma questão, não uma valoração. É uma reflexão sobre o próprio mecanismo intrínseco à fragmentação. Como lidar com a coerência em meio a pulverização? Que espécie de ordenamento essencial reclama? Tento aqui supor esse sentido de certo para além do lógico causal. Notadamente a reta final da peça constrói um percurso de redenção para a própria peça, como se os elementos do caleidoscópio que estiveram um tanto mais aleatórios, de repente encontrassem um rumo, um prumo. É uma sensação. E talvez não seja mesmo a narrativa responsável por essa iluminação. É como se o foco da câmera abrisse e fechasse ao longo da encenação, mas não porque o operador assim o desejou, mas por uma disfunção do diafragma. Perguntaria finalmente se não existe um certo excesso pelos cantos, como se os adultos tivessem tido dificuldade de deixar de fora alguns brinquedos tão queridos.

Falta dizer o quanto o conjunto é inspirador para crianças e adultos; o quanto provoca e fertiliza as inteligências; o quanto é tocante em seu misto doce e acre-doce; o quanto é louvável a conjunção limítrofe de teatro infantil e pesquisa de linguagem contemporânea. Essa pesquisa embora esteja presente, não ocupa o primeiro plano. Os procedimentos estão lá, os deslocamentos, repetições, ausências, justaposições, inversões, convergência de linguagens, intertexto, colagem, improviso, ecos da dança contemporânea, mídia eletrônica, interfaces, interatividade. Mas os procedimentos funcionam como veículo. Constituem um discurso em si, mas que não se esgota em si. A peça vai além. A peça parece feita de pequenos bibelôs gigantes que se entremeiam e se complementam e se atravessam e se extrapolam e se desentendem e se conciliam numa espécie de ciranda dodecafônica, como um jogo de regras móveis, de língua inventada que se desmancha no ar e amanhã já se esqueceu, e que fica para sempre, mas não se sabe onde. Como o endereço secreto daquela casa encantada, engraçada, que não tinha teto não tinha nada, mas onde é bom ficar, porque pode sair e pode entrar, e tem chão, tem parede, e tem teto, e de repente não tem mais, e tem tapete voador que sopra e surfa e insufla para dentro e para fora dos livros, não só os de Clarice, mas todos os livros de todos os tempos, inclusive os que sumiram, inclusive os que nunca serão escritos, mas que estarão para sempre guardados na memória do mundo. (Alessandra Colasanti)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Um ensaio sobre algumas das críticas de Hamlet e as Razões da Crítica .

Nota: Os objetos aqui trabalhados são críticas de autoria de Jefferson Lessa, Bárbara Heliodora, Ana Kutner e Tânia Brandão para a peça Hamlet, publicadas no “O Globo”. Além desses objetos, faço uso do livro “Razões da Crítica” de Luiz Camilo Osório.

Nota 2: HAMLET de William Shakespeare. Tradução: Aderbal Freire-Filho com Barbara Harrington e Wagner Moura. Direção:Aderbal Freire-Filho. Em cartaz de 13 de março a 31 de maio de 2009 no Oi Casa Grande, Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon. Sextas e sábados, às 20h30. Domingos, às 19h.
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Penso que todo autor de crítica pode e deve munir-se de certa dose de irresponsabilidade no sentido de não temer abalar o senso comum. Mas é preciso que a liberdade oriunda dessa irresponsabilidade (que é legítima) não se confunda com uma coisa qualquer, com uma falta de parâmetros, de critérios. Não defendo aqui um modo padronizado, único, de redação. Mas há que se buscar pistas e caminhos que colaborem para a atribuição de credulidade ao posicionamento crítico.
Em seu livro As Razões da crítica, Luiz Camilo Osório afirma:“Há que se julgar justamente porque não temos mais nenhuma certeza a priori sobre como uma obra cria sentido”. Ao dizê-lo, faz menção a um ajuizamento autoral, mas não autoritário que, dividido com o público, contribuiria para a criação de um espaço comum onde a partir do dissenso poder-se-ia tanger algumas considerações importantes em torno do fenômeno artístico num tempo de múltiplas incertezas acerca de sua natureza. É sempre arriscado atribuir função às coisas no campo da arte. Mas uma provável função da crítica seria então buscar uma dinâmica de esclarecimento por destrinchamento e exploração do fenômeno. Nesse sentido, não pode haver maior desserviço do que uma crítica teatral que feche suas conclusões em “bom” ou “ruim”. O que estamos explorando, esclarecendo ou destrinchando ao chamar algo de bom ou ruim?
Assim, começo agora de fato meu ensaio sobre críticas a partir da redação de Jefferson Lessa. O que significa ele dizer, por exemplo, que “A luz de Maneco Quinderé é bonita e luxuosa”? Ou dizer que o cenário de Fernando Mello e Rostand Albuquerque é “moderno, bonito e funcional”? Em que medida, de fato, isso contempla o trabalho dos artistas ou serve de algum indicativo ao público? A redação de Jéferson Lessa, apesar de ter o desbunde necessário e louvável para um crítico teatral, segue parâmetros de ajuizamento ultrapassados.
Primeiro, por uma discussão que se encerra em adjetivos. Segundo, pela crença na existência de uma essência das personagens. Personagens não são almas que vagam por aí à procura de atores que as corporifiquem. E essa é uma discussão datada, suficientemente abalada e encerrada no século passado. Dizer que “se trai a essência” de um personagem pode significar ignorar o gesto autoral presente no trabalho do ator, da direção e dos demais ramos da produção teatral. Acreditar numa única essência, estável, de personagens é relegar ao ator a função de executor e ao diretor a involução para a condição de encenador, que somente materializaria as idéias de um texto.
Bárbara Heliodora também se mostra adjetivacional e laudatória. Mas, vai mais além em seu desserviço por sua característica marcantemente normativa. Ela incorre em colocações pueris como “É boa a luz de Maneco Quinderé e interessante a música de Rodrigo Amarante”. E é evidente que, em se tratando de Shakespeare, há a atribuição de valor canônico ao texto. Seus argumentos fazem menção sempre a como o texto e os personagens são maiores do que aquilo que se fez deles em cena. E isso é feito em total desconsideração com a intenção e os recursos estilísticos autorais dos artistas. Um exemplo, o figurino. “Os figurinos de Marcelo Pies são fraquíssimos, os melhores sendo os que ficam em trajes simples e contemporâneos.”
O que importa ao desenvolvimento do pensamento em torno da arte não é se os figurinos são fracos, mas como e porque são fracos ou fortes. Na condição de crítico faz parte saber que ele foi feito a partir de camisas sociais brancas masculinas e contemporâneas que, em resultado mosaico, sugerem algo entre um vestido de noiva e uma camisa de força. A partir de tais especificidades eu posso julgar se essa arte traz em si ou não alguma potência.
Ana Kutner já parece ter noção e propriedade para falar de caminhos da cena enquanto jogo. “ É a deliciosa proposta de fazer teatro no momento em que é feito (...) Estar em cena é uma necessidade de interferir na história que todos, atores e platéia, vêem.” Esse caráter de intervenção, naturalmente, será pouco compreendido por quem quer que ponha a literatura à frente da inteireza material e presente da cena. Intervir é afirmar-se, é existir. A intervenção é valorada positivamente por Ana Kutner também quando ela diz que “Gilbray Coutinho como Polônio aproveita todos os estímulos que a cena lhe sugere, nos apresentando com um novo colorido para um polônio bem humorado e inteligente.”
Contudo ao tentar no último parágrafo dar conta de todos os outros setores da peça ela incorre também em laudos vazios. Penso então que a necessidade laudatória torna qualquer crítica mais extensiva do que intensiva. O crítico então sai do limite de seu raio de competência discursiva em função de uma pretensa aparência de conhecimento sobre a totalidade da obra.
Tânia Brandão chega mais perto daquilo que Luiz Camilo Osório parece defender ao reivindicar uma crítica menos atenta a julgamentos sumários e mais engajada a refletir aspectos processuais e procedimentos da obra. Ela diz que “Na construção do espetáculo, o caminho foi ampliado por uma série de soluções que falam do mundo enquanto teatro a partir do lugar do indivíduo”. E é a partir dessa análise que ela reconhecerá no corte de trechos “políticos” da peça não uma traição a Shakespeare, mas uma edição autoral legítima da equipe de dramaturgistas empenhada numa tradução específica feita para o espetáculo. “O foco da montagem incide sobre a luta do jovem, deixa de lado o tema do poder e da sucessão”.
Esta minha crítica de críticas destina-se, portanto, não a buscar um modo padronizado de escrita. Mas empenha-se em prolongar os caminhos de uma discussão ética em favor de uma crítica que supere a apatia, o descaso e a desimportância conferida ao ato. Superação esta que a meu ver deve ser revestida de um paradoxal desbunde responsável, irreverente ( no sentido da não reverência ) e, no entanto, dotado de cuidado.
Um Hamlet hoje



“Hamlet é como uma esponja.
A menos que seja estilizado ou representado
com uma antiguidade, ele absorve imediatamente
todos os problemas de nosso tempo.”
Jan Kott
in: Shakespeare nosso contemporâneo, p 74.




O filme Hamlet (2000), de Michael Almereyda, atualiza a tragédia shakespeariana para os nossos dias. O reino da Dinamarca, local da ambientação original do texto de Shakespeare, foi transposto para o ambiente urbano e caótico da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Para Almereyda, a Dinamarca agora é uma grande corporação e as personagens se movimentam ao redor desta empresa. O Rei Hamlet assassinado, foi convertido no filme para presidente desta corporação, assim acontecendo com Cláudio, que era irmão do comandante maior da “Denmark Corporation” e usurpou seu lugar de mandatário, Gertrudes é a mulher do dono da companhia e o troca por Cláudio. Polônio e Laertes, são empregados de confiança. O príncipe Hamlet foi convertido em um estudante de artes que retorna ao Hotel Elsinore, onde reside sua família, após a conclusão de seu curso de cinema e para o ambiente da empresa de sua família. Hamlet se depara com os fatos que aconteceram na sua ausência. A morte misteriosa do pai, o casamento repentino de sua mãe com seu tio. Na peça, personagens como Horácio e Marcelo eram soldados a serviço da coroa, no filme há mudanças significativas. Horácio passa a ser um amigo íntimo de Hamlet e Marcelo é agora uma mulher chamada Marcela, namorada de Horácio. Outra alteração de destaque no filme é o fato de o jovem Hamlet ser um videomaker e com o intuito de desmascarar seu tio ele monta um filme pra mostrar a todos da diretoria da empresa sobre o ocorrido. Esta passagem originalmente é executada por uma trupe de Teatro e em uma apresentação teatral.

Na peça do bardo inglês, o príncipe Hamlet já se encontra no reino da Dinamarca quando os fatos que se sucedem ocorrem, enquanto que no filme de Michael Almereyda, o jovem Hamlet, que aparece aqui nesta atualização como o filho do dono de uma grande corporação, que é chamado por seus funcionários de “rei” e, por esta razão, por associação, o rapaz é alcunhado de “príncipe”, que retorna à Nova Iorque após passar uma temporada fora para concluir seus estudos encontra seu ambiente familiar virado às avessas. Assim como na peça de Shakespeare foi mantida intacta toda a angústia, ódio, ciúmes, incertezas, dúvidas e inquietações de Hamlet.

Creio que a personagem de Ofélia foi a que menos alteração sofreu em Hamlet (2000), pois ela continua sendo uma jovem omissa e sem atitudes próprias e ainda é usada como joguete para que Cláudio, Gertrudes e Polônio alcancem seus intentos. No caso dos dois primeiros, a moça é usada para descobrir a causa do comportamento estranho de Hamlet e para seu pai (Polônio), Ofélia servirá de escada para uma futura ascensão a cargos mais elevados dentro da empresa Dinamarca. A personagem, mesmo nos dias de hoje continua sem iniciativas para conquistar o seu amor. A atitude de Ofélia certamente seria outra, pois acredito que ela se rebelaria e se oporia fortemente aos descalabros de Polônio, atualizando, portanto, a característica de Ofélia e colocado-a em sintonia com a proposta de Almereyda.

Hamlet (2000) tem abertura para questões contemporâneas que não estariam na peça. O exemplo mais claro para esta afirmação está na parte final do filme, que diz respeito ao duelo entre Laertes e Hamlet. Originalmente o embate entre eles ocorria com floretes em punho. Já na versão de Almereyda, esse confronto ocorre com armas de fogo. Laertes também faz ameaças a Cláudio, apontando lhe um revólver, para que este revele quem é o responsável pelo assassínio de seu pai. Outro modelo que aparece no filme e não na peça é o fato da agressão que Hamlet sofre. Este toma um soco de Cláudio e no texto original em nenhum momento existe esta passagem de que o Rei teria agredido fisicamente seu sobrinho/enteado. Além destes, outro que se pode destacar é o que diz respeito à execução do ardil de Hamlet. O jovem faz um filme para desmascarar a farsa de seu tio, no entanto, no original essa passagem se dá através da representação de uma peça teatral para a corte de Cláudio e há também a existência de uma companhia teatral.

Hamlet 2000 tem em seu elenco: Ethan Hawke(Hamlet), Kyle MacLachlan (Claudio), Diane Venora (Gertrude), Sam Shepard (Rei Hamlet / Fantasma), Bill Murray (Polônio), Liev Schreiber (Laertes), Julia Stiles (Ofélia), Karl Geary (Horácio), Paula Malcomson (Marcella), Steve Zahn (Rosencrantz), Dechen Thurman (Guildenstern).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p 69 – 82.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

IN ON IT, a pérola e o mar.




IN ON IT, a pérola e o mar.
por Alessandra Colasanti
julho de 2009

IN ON IT é um texto do autor canadense Daniel MacIvor com tradução de Daniele Avila e direção de Enrique Diaz, em cena, os atores Emílio de Mello e Fernando Eiras.

IN ON IT. O primeiro contato com a peça é através do título. E nesta versão brasileira o título em inglês foi preservado. E preservado talvez seja mesmo uma boa palavra. Preservar é conservar, manter intacto algo que não se deseja perder. Em IN ON IT sonoridade e representação escrita estão conectadas de maneira uniforme. Sentido, sonoridade e grafia se complementam. Um círculo que se fecha, e não para de girar; dentro dele, e para além dele, a peça pulsa.

Textos e comentários entreouvidos e entrepinçados por aí confirmam o fascínio que a peça tem exercido junto a diferentes platéias. Um encanto que parece advir do equilíbrio entre aspecto emocional e sua derivação formal. O conteúdo, sobre vida, morte, amores e perdas, é por certo tocante, mas talvez esse não seja o epicentro dos afetos causados pela peça. Poderíamos imaginar o efeito dramático de IN ON IT como resultado direto de suas proposições formais; imaginar o drama avultando-se da forma. Mas, podemos ir além. Podemos num esforço de abstração buscar antever a estrutura do texto e a encenação de mãos dadas embalando a representação. Onde atores representam dores, amores e outros atores. Representações fugidias que aparecem e desaparecem. Como aquele espelhinho que tenta captar a luz do sol, ora vemos o reflexo da luz, ora vemos a mão que segura o espelhinho.

Gosto de usar aqui a palavra peça ao invés da palavra espetáculo. A palavra espetáculo fala de visibilidade. O que salta aos olhos em IN ON IT é mais o que não se vê, é o que se pressente. O que seduz é o equilíbrio entre diferentes instâncias, entre instâncias díspares, díspares e complementares. É o imponderável que se encontra fora do conteúdo dramático e fora da estrutura formal, e que é ao mesmo tempo balizado por eles. Imponderável, porém presente.

Gosto de imaginar que a empatia da peça não se encontra exatamente na representação do homem que irá morrer em cena, ou na história de amor que se extingue. Podemos tentar encontrar essa empatia nos procedimentos cênicos e literários, na sucessão de planos temporais, na metalinguagem, na precisa e comovente interpretação dos atores. Podemos tentar encontrar essa empatia, mas ela não está circunscrita, pelo contrário, ela está em um outro plano. Ela está entre as partes. Ela está livre, passeando e iluminando todas as partes. Esse entre é o trabalho. Esse entre é a encenação.

Na pérola temos a casca, a jóia, o mar lá fora e o entre que é a ostra. A casca e a ostra podemos guardar, desenhar ou destruir, o gosto da ostra só se pode sentir. Há quem diga que ostra tem gosto de mar. As escolhas da direção contribuem para potencializar as qualidades do texto, e mais do que isso, para transformá-lo. Para salvá-lo dele mesmo. O resultado parece resguardar o texto de seu próprio drama. A dramaticidade que se vê em cena (ou não se vê) opera entre vias, entre a composição e a decomposição. A síntese dessa espécie de drama dialético estaria no equilíbrio das escolhas, não no tema, nem na forma. O resultado é o que resta. E o que resta é o que está fora, como a memória do gosto do mar.

Poderíamos dizer que a peça apóia-se sobre um eixo dicotômico. Na base desse eixo encontrar-se-iam de um lado o excesso e transbordamento das experiências de vida dos personagens, e, do outro, a economia dos instrumentos cênicos, a cena limpa, a interpretação que lateja em sua contenção. A peça parte de um tencionamento estrutural sim, mas ultrapassa o dualismo dialético. É a pluralidade de pistas discursivas que determina o tencionamento dramático. A ação dramática se dá no embate destes planos, no choque, no avançar entrecortado, e também nos entre espaços, nas lacunas do que se conta e do que se deixa de contar, do que se mostra e do que se deixa de mostrar. É da fricção entre múltiplos tempos e discursos, e, portanto, no manejo desse sistema, que irrompe a força da peça.

A direção opta por códigos claros de leitura para que o espectador possa distinguir os diferentes planos de ação temporal. Cada plano possui códigos específicos de luz, som e figurino, que se alternam continuamente. As quebras ao mesmo distanciam e aproximam o espectador. Distanciam porque interferem na ilusão dramática. E aproximam porque determinam ritmo à cena. Funcionam como ondas. E nesse ondejar o espectador é levado e enlevado. A alternância é em si. A alternância é o próprio sistema de manutenção da tensão cênica.

Há trabalhos que encantam pela coragem, pela jovialidade, pela originalidade, pelo arrojo, pelo ímpeto de ruptura, pelo desejo de novas formas de expressão, pela proposição de linguagens. Há a direção que prioriza potencializar o que num texto há de mais instigante. Há a direção que vê, há a direção que quer ser vista, há a direção que quer se ver, e há a direção simplesmente perdida, cega, que nada vê. O mérito de IN ON IT parece encontrar-se na justa adequação de todos os ingredientes da cena. O desafio da montagem de Diaz parece repousar na justeza da condução do tempo, do estabelecimento do ritmo e da ação, do equilíbrio das atuações. Ou seja, no aprumo dessa carpintaria. O que não é nem pouco, nem fácil. Adequar-se aqui não tem a ver com limitar-se, tem a ver com visão e generosidade. Ser generoso é ir além de si mesmo. Generosidade com o texto, com a encenação, com a platéia, e com a própria história de Diaz. Diaz intuiu que talvez não coubesse imprimir ali sua marca. Marca tem a ver com morte. Marcar sim é limitar. O que prova que, no contexto indissociável de sua obra, IN ON IT é sim experimentação. E é também um gesto corajoso, ao mesmo tempo jovial e maduro. A peça, por oposição, oxigena o percurso de pesquisa do diretor. E, assim como, sua direção liberta o texto de MacIvor da armadilha de seu drama, IN ON IT amplia o trabalho de pesquisa de Diaz, e o projeta para além de si mesmo. Liberta e preserva, transforma e reforça a sensibilidade estética desse artista.

Há que se ter em mente que uma pérola pode ser vista de diferentes distâncias. De uma determinada distância ela parecerá perfeitamente lisa, de outra ela desaparecerá, mas se chegarmos mais perto, e ajustarmos o olhar a uma lente mais minuciosa, ver-se-á uma série de reentrâncias, uma infinidade de pequenas falhas. Assim é a encenação de IN ON IT, aparentemente perfeita, redonda e amalgamada, mas as asperezas, imperfeições, contradições e incertezas que fazem parte da vida e da arte estão também lá, paradoxalmente lá, entre arestas e lisuras.

Importante dizer que pérola é também o grão que ilumina e reflete. Em “A moça com o brinco de pérola”, da escritora americana Tracy Chevalier, todo um romance é escrito em torno da pequena faísca que assegura equilíbrio e genialidade ao quadro de Johannes Vermeer, uma metáfora ao que não se nota, mas faz toda a diferença. IN ON IT é assim, uma pequena fonte de luz na carreira do diretor Enrique Diaz, uma pequena fonte de luz na atual cena carioca, uma pequena fonte de luz na vida de quem tem o prazer de assistir à peça. Uma fonte de luz tão delicada e intensa quanto a concreção densa que se forma nas conchas de moluscos a partir da deposição de material nacarado sobre um grão de areia ou uma partícula qualquer. O resto é o mar. (Alessandra Colasanti)

dogma questão de critica


dogma lançado pelo site amigo questão de crítica

"DOGMA QUESTÃO DE CRÍTICA

1 - As críticas não devem conter adjetivos ou advérbios de modo (e locuções adverbiais) que designem uma valoração desprovida de conceituação sobre o objeto analisado. Os advérbios de intensidade também devem ser evitados. 2 - Os críticos devem cuidar para não tratar o trabalho do ator como elemento independente do espetáculo, procurando discutir a materialidade da atuação sem reforçar o hábito da valorização da personalidade do ator.3 - Os textos críticos não devem conter frases facilmente 'destacáveis', que possam ser citadas fora de seu contexto para validar ou desvalidar a obra ou qualquer um de seus elementos.4 - O objeto em questão não deve ser comparado com nenhuma ideia de 'original', como texto escrito ou primeira montagem, salvo análises verticais, profundas, de uma hipótese muito bem fundamentada.5 - Os textos críticos têm obrigatoriamente que ter uma hipótese.6 - Os críticos não devem listar atores ou elementos do espetáculo sob o mesmo prisma de análise. 7 - Textos de programa não podem ser citados nas críticas. "

texto completo em:
http://www.questaodecritica.com.br/conteudo.php?id=341

CRÍTICA MOFADA APELA PARA A CENSURA

Amigos, recebi este texto por email e acho interessante que este debate ocupe o espaço do nosso blog.

"A critica teatral Bárbara Heliodora ultrapassou, em sua coluna em O Globo (25/6/09), o limite da lei da civilidade. Ela fez um apelo à lei da censura (começando por uma negação imediatamente desmentida), tal como existiu na época da barbárie da ditadura em nosso país. “Sou e sempre fui contra a censura, porém creio que deveria existir uma lei que impedisse o uso indevido e abusivo de nomes de autores famosos e mortos, impossibilitados, portanto, de se defender contra incidentes infelizes e desastrados como, por exemplo, o lastimável espetáculo em cartaz no SESC Copacabana intitulado “As ridículas de Molière”.

Pavoneando-se de grande defensora dos clássicos, ela usurpa o lugar vazio da interpretação para se colocar como guardiã do Arte Absoluta e herdeira testamentária dos mestres de teatro. Até quando, pergunto agora, essa senhora continuará, impunemente, destilando seu ódio aos artistas e satisfazendo seu sadismo desenfreado aos que ousam fazer arte neste país?

Com sua crítica mofada, grosseira e virulenta, Bárbara Heliodora vem prestando um desserviço à arte teatral no Brasil devido ao espaço que lhe é conferido em um dos jornais de maior circulação no país. Não são todos os leitores que conseguem ler pelo avesso a mensagem já evidente para muitos: “Ela não gostou, então vá!”.

Desrespeitando os artistas de teatro, agredindo-os e acusando-os de assassinato (cf. “Shakespeare cai morto no Leblon”) as “ridículas de Bárbara” lançam seus perdigotos venenosos aos que tocam, com uma linguagem contemporânea, em “seu patrimônio” como Sófocles, Shakespeare, Molière. Em nome de quê? De uma pseudo-erudiçã o que não passa de impostura. A arrogância não escamoteia a ignorância: ela a revela. Há muito Barbara Heliodora não se atualiza em sua leitura paralítica. Isso não seria o grande problema, se ela não se colocasse em sua coluna, como o grande Outro, arauto da Lei, da Verdade e da Arte, de todos os “raquíticos seres” da classe teatral.que ela menospreza e humilha. A ponto de dar como título dessa crítica “Desastre joga na lama o nome de autor francês”.

Atenção, Bárbara Heliodora, aquele que se julga o Outro dos outros é a própria definição do canalha – traço que se encontra em ditadores paranóicos que fizeram a história das maiores devastações! Ainda bem que essa senhora não ocupa nenhum cargo de poder, pois, seria pior que a Rainha de Copas da Alice de Lewis Carrol, cujo bordão “Cortem-lhe a cabeça!” é tanto sinal de crueldade quanto de escárnio. Não é o que tenta fazer no papel? Poderíamos dizer, como o fez um colega de sua geração: “Ela só elogia os amigos”, ou, quando lhe interessa posar de santa, assoprar depois de morder, mastigar e cuspir.

Tão erudita, a defensora de Molière perdeu a oportunidade de informar ao público que Preciosa foi um movimento feminista do século XVII na França liderado por mulheres cultas e refinadas que adotaram uma nova modalidade do amor (amizade amorosa e o direito da mulher no amor) permeada por um novo código de linguagem revolucionário, pleno de imagens e metáforas, em contraposição aos pedantes. Molière, por sua vez, ao escrever As preciosas ridículas, diz em seu prefácio: “Eu quis mostrar que as coisas mais excelentes estão sujeitas a serem copiadas por macacos ruins (...) as verdadeiras preciosas não devem se sentir feridas quando encenamos as ridículas que as imitam mal”. Mas, isso não interessa Bárbara Heliodora, e sim em suas preciosas críticas ridículas e ofensivas linhas, dizer que o elenco dá “guinchos e pulos”.

Que tal reler (ou ler) A crítica do juízo de Kant. Desculpe, pode ser um pouco indigesto, mas é um clássico. Ok, pode se inspirar em Barthes, ou se reciclar em algum programa de pós-graduação atual. Suas preciosas reacionárias desviam a atenção do principal: a função do crítico de arte, que é a de informar, localizar a obra e o autor, tecer considerações sobre o texto e a encenação e orientar os artistas envolvidos. A coluna de jornal não deveria ser o lugar para os críticos satisfazerem sua pulsão de morte na vã tentativa de perpetrarem assassinatos de carreiras. Ela chega ao cúmulo de acusar o espetáculo do Espaço SESC de mal-intencionado. E qual seria, minha senhora, a má intenção dos atores e da diretora? Não estaríamos diante de um caso banal de projeção? Aquilo que acusas no outro é teu, elementar não?

Em O quadro de uma execução, peça do dramaturgo Howard Barker, celebrado este ano em Paris como um grande representante do teatro inglês contemporâneo, encontramos o diálogo entre Rivera, crítica de arte e Urgentino, doge de Veneza. “Rivera: O crítico tem medo do artista e inveja seu poder. Ele tem vergonha do que ele acredita secretamente ser um dom inferior: o dom de descrever. Portanto, em vez de servir ao artista, ele o humilha. Urgentino: Esse é o mau crítico. Mas há também os bons”. E mais adiante Rivera diz: “A crítica é muito violenta. É sangrenta, sem misericórdia. Aponta as facas para cortar reputações em frangalhos, sufocar o órgão da expressão. Tento parecer gentil, mas minha arte é o assassinato.” Perdão por citar um autor contemporâneo.

Vou escolher um clássico. Voltaire, está bom? O Cândido: “É verdade que se rí sempre em Paris?” perguntou Cândido. “Sim” - explicou o abade, - “mas como expressão de raiva, porque lamentamos tudo com grandes gargalhadas e praticamos rindo as ações mais detestáveis”. “Quem é” - continuou Cândido - “esse porco gordo, que me dizia tão mal do espetáculo em que chorei, e dos atores que tanto me agradaram?”. “É um maledicente" - respondeu o abade – “ganha a vida dizendo mal de todas as peças e de todos os livros; odeia quem obtenha êxito, como os eunucos odeiam os que gozam; é uma dessas serpentes da literatura, alimentando- se do lodo e do veneno”. Se Barbara Heliodora esqueceu como se faz uma crítica honesta e elegante, deveria ler a de Luiz Paulo Horta, publicada ao lado de sua coluna no mesmo dia, sobre as “Variações Goldberg” de Bach, interpretado por Jean Louis Steuerman. Ali, como leitores, aprendemos algo sobre o autor, a obra, o interprete e a interpretação. E não um amontoado de asneiras e atrocidades empacotado pelo desprezo da alteridade e da diferença".

Antonio Quinet, Psicanalista, Doutor em Filosofia, Dramaturgo, Professor do Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA) onde desenvolve a pesquisa “Teatro e Psicanálise”, Diretor da Cia. Inconsciente em Cena.

domingo, 5 de julho de 2009

O Passado que não Passa

Inveja dos Anjos, em sua rica trilha, é atualmente a última estação do Grupo Armazém. A peça está sendo apresentada na Fundição Progresso, sede da compania desde sua chegada ao Rio de Janeiro em 1998.
Os trens ao longo da história apresentaram progresso e agilidade. Afinal foram eles as grandes estrelas da revolução industrial. O trem trouxe consigo não somente uma revolução tecnológica, mais trouxe também uma revolução cultural, que mudou o cotidiano das pessoas. As ferrovias que cortaram o mundo com certeza contribuíram imensamente para a nossa atual forma de existir. E é justamente neste espaço de passagem e parada, em que se pensa que se parte para algum local, ou que se chega a um lugar, que habita a peça do Armazém.
Esteticamente perfeito, os trilhos dos trens avançam no palco, e até mesmo em direção ao teto. A grande parede de tijolos, em frente à platéia, repleta de concretude nos recoloca no chão, pois os trilhos em si, da forma em que cruzam e se esfacelam, nos levam numa viajem onírica.
Entre a realidade dos fatos, os sonhos e os projetos estilhaçados, o drama da memória é a matéria trabalhada, tal qual massa de pão batida.
Apesar de ser um local de passagem, o passado dos personagens não passa. O que se pensa esquecido, dorme latente, até vir à tona, ou vive presente como um fantasma, no caso de Branca (Simone Viana), que realiza o momento mais bonito da peça, uma dança com o seu amante morto, do qual ela não se separa até morrer.
É a partir do encontro de três amigos, Patrícia Selonk, Marcelo Guerra e Simone Mazzer, que discutem suas memórias, que a peça vai se desenrolar, outros personagens surgem e o que parecia morto se percebe mais vivo que nunca. Afinal nada é mais difícil de se libertar do que o passado.
Portanto teremos sempre o jogo do lúdico e do real, pois uma memória pode também ser inventada ou modificada, entre os fracassos e insatisfação da vida cotidiana e banal. O que há de comum nestes personagens é que a todos falta algo, todos perderam alguma coisa, são personagens frustrados e incompletos, ignorantes de si em função deste vazio, deste lapso de algum tempo obscuro e não resolvido.
A luz do espetáculo é belíssima, se encaixando perfeitamente no texto e no cenário, feita pelo sempre impecável Maneco Quinderé. O cenário, que de fato é o elemento mais forte do espetáculo é de Paulo de Moraes e Carla Berri.
O texto composto a partir das improvisações do grupo, por Paulo Moraes e Mauricio Arruda Mendonça, tem grande qualidade imagética e soa muito bem aos ouvidos.
O grande problema do espetáculo é a atuação dos atores. Com exceção de Patrícia Selonk e o momento brilhante de Simone Viana, as representações são representações. Profundamente afetadas, num exagero desmedido, os atores fazem muita força para se emocionarem e emocionar a platéia. Uma gritaria sem fim em alguns momentos, que pode convencer pelo susto, mas que a uma pessoa mais atenta não passa de histeria. Simone Mazzer em alguns momentos parece passar por uma constipação no baixo ventre e estar numa tentativa desesperada para se libertar, ou libertar sua personagem da moléstia. Acho importante ressaltar que em muitos momentos no teatro os atores deveriam entender esta máxima de que o menos é mais. Sem falar de Verônica Rocha que fez a criança mais caricatural que eu vi nos últimos tempos, o verdadeiro Teatrinho Troll.
De qualquer maneira é um espetáculo respeitável, mas que peca na descompensação de seus atores. Fora isso, acho que as possibilidades do texto e do cenário não tem limites.
Valeri Rodrigues

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Um rascunho de Hamlet

Por Dâmaris Grün


"Não se trata de modo algum – Preciso dizer? - de uma atualidade forçada, de um Hamlet encenado numa cave de jovens existencialistas. Aliás, ele já foi representado de fraque ou em roupas de circo, em armadura medieval ou trajes do Renascimento. O que interessa não é o vestuário. O importante é chegar, por intermédio do texto de Shakespeare, à nossa experiência contemporânea, à nossa angústia e a nossa sensibilidade."(Kott: 2003, 70).


Começo esse ensaio com uma citação de Jan Kott em seu famoso Shakespeare, nosso contemporâneo, que considero de primordial importância para se pensar a encenação de um clássico da dramaturgia ocidental dentro das perspectivas e experimentações do teatro contemporâneo. As palavras de Kott deixam claro um sentimento já exposto e dissecado em cena por vários encenadores e grupos de teatro pelo mundo. Dar a ver um grande texto é ainda uma experiência difícil e que requer um toque de ousadia sim, para não ser enfadonho no palco. Kott alerta para a necessidade de ser atual sem ser necessariamente contemporâneo no que diz respeito às vestes ou cenário e outros elementos que compõem uma cena; mas trazer essa atualidade de Shakespeare por meio das vozes que evocam os personagens, por meio das questões existenciais ali expostas nesse texto já tão encenado pelo teatro ocidental. Nesse sentido a encenação de Ensaio.Hamlet, engendrada pela Cia dos Atores tendo estreado em 2005 sob direção de Enrique Diaz, traz precisamente essa atualização, essa aproximação da história do príncipe dinamarquês ao público que lotava o teatro de arena do Espaço Sesc de Copacabana na época de sua estreia.



A montagem fazia uma espécie de “releitura” do já bastante encenado clássico referido. O que se operava em cena, como uma força motriz, era uma clara idéia de apropriação, de tomar um texto e desconstruí-lo sem “respeito” algum. A questão não é aqui que o texto teatral perde sua “validade” ou importância. Porém não será mais o centro dessa montagem, o texto aqui é um material a ser dissecado ao extremo, para uma perspectiva inteiramente diferente do teatro em relação ao texto dramático. No teatro o texto se apresenta como um material, uma tessitura que pode ser esgarçada, caso empreendido pela companhia carioca de Enrique Diaz. O que podíamos ver e perceber no palco era o texto, que data do Renascimento, o grande clássico, como uma espécie de “pretexto” para as questões que o grupo queria discutir, sejam elas do âmbito estético (e principalmente esta), como existenciais, psicológicas e humanas. A peça de Shakespeare serviu aqui como uma espécie de força geradora de questões para a cena, para os atores, direção e público, um cúmplice daquele acontecimento real, possuindo um estatuto independente em relação a obra cênica final. A partir de tal texto partiram para investigações cênicas, estéticas do trabalho criador e imagético do grupo. Nesse sentido não houve uma preocupação em ser “fiel”, ou guardar um demasiado respeito ao texto e autor. Pelo menos não aquela em que se pretende seguir pressupostos shakespereanos, figurinos de época, rebuscamento de falas não coloquiais ou um cuidado acurado em não subtrair falas, palavras e indicações temporais e espaciais dadas pelo autor. Há uma vontade de partir do referente texto e implodí-lo de dentro para fora resultando em migalhas esmiuçadas que se concretizam em cena. Não que a história não seja contada. Ainda há a fabula posta em cena, há o texto como esqueleto da cena. A trajetória do príncipe dinamarquês e seus infortúnios na vontade e contra vontade de vingar a morte de seu pai ainda se mostra e move a vontade cênica proposta pela trupe. Ainda estão todos os principais personagens que compõem aquela tragédia. Mas o roteiro é preenchido por tantos elementos exteriores do imaginário do grupo, da atualidade, da linguagem desenvolvida por eles que o intuito não será mais “dar conta” daquela fábula, ou ser verossímil e coerente come como conta a história. As possíveis imagens que ele sugere e traz à tona é o que se leva mais em conta.

Ao assistirmos um trabalho como esse empreendido pela Cia dos Atores, podemos trazer ao cerne do teatro a questão de como ser fiel a um grande texto, ou se ainda há a possibilidade em ser fiel ou se pode ser algum dia. O que parece transparecer nessa montagem são as diversas possibilidades que um bom e grande texto pode proporcionar para a empreitada estética. Diversas leituras, reflexões e ângulos que podem ser focados a partir dele como objeto para livre manuseio. Não há fórmulas preestabelecidas de se encenar Shakespeare. Não há formas dadas a priori para sua concepção. A priori temos suas questões atemporais que transcendem épocas e mais épocas e a maneira como os artistas às tomaram para si, como é bem característico da montagem em questão. A “bagunça” proposta por Enrique Diaz, o caos de elementos cênicos, a profusão de imagens, a polifonia de vozes que se multiplicam no espaço, vídeos que desdobram e atualizam a cena, um caráter melancólico e bufo impresso pelos atores/performers que se revezam em alguns personagens da tragédia eram elementos que formavam uma cena híbrida, tributária do teatro pós - dramático. A questão é que não há fórmulas para se encenar Shakespeare ou qualquer clássico de nossa dramaturgia. Não há como ser fiel a uma pretensa forma de montar esse texto, pois sempre será uma pretensa idéia e sempre uma criação em cima do texto. Basta ser mais ou menos ousado. Ensaio.Hamlet foi um rabisco, um rascunho, uma possibilidade de contar e dar visão ao clássico eterno e universal do bardo inglês.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Onde o menos é o que importa!

O que Argel dos anos quarenta tem em comum com o Rio de Janeiro de 2009? Provavelmente muito pouca coisa. Mas talvez o sentimento de Meusault diante a sua vida medíocre, seja o mesmo que de muitos brasileiros que como ele vivem apenas para sobreviver. O protagonista e narrador de “O Estrangeiro” romance de Albert Camus é um funcionário público que não tem grandes pretensões, trabalha como meio de subsistência, namora apenas para ter sexo e não tem intenção alguma de estabelecer uma família, mas quando sua namorada o questiona sobre constituir um matrimônio, ele decide casar apenas por causa dela, por ele continuaria tudo como antes...A sua perspectiva de vida é apática, sem emoção, ele é um estranho para sociedade, quando sua mãe morre, ele não demonstra dor ou qualquer tipo de sentimento.
É justamente nesse ponto que o espetáculo em cartaz no Teatro do Jóquei inicia. A versão teatral do romance feita por Morten Kirkskov e traduzida por Liane Lazoski, transforma o livro em um monólogo, onde Meusault é o narrador de sua própria história. E como é narrar a sua própria história sem tomar partido? Para a personagem em questão é até fácil, ela está a margem das suas próprias emoções, ele não se deixa envolver, não é um homem frio, ele simplesmente não se importa. O que vale é o prazer do corpo naquele momento. Ele nos conta que é o dia do enterro da mãe, ele vai até uma cidade perto de Argel para enterrá-la, volta, vai ao cinema com a namorada, encontra um amigo, e vai pausadamente nos contando o seu dia, enquanto se veste. E quando descobrimos o porque deste homem estar se vestindo lentamente e nos contando a sua trajetória de vida até então é que temos uma revelação que faz mudarmos totalmente a nossa concepção sobre o que estamos assistindo.
Albert Camus nos pega uma peça, acaba mexendo em nossas emoções, transformando uma personagem que seria condenada por todo nós em vítima. Não uma vitima real, mas uma vitima da sociedade que marginaliza o diferente e isso faz com que sintamos pena e simpatia por Meusault.
É incrível como toda a montagem faz jus ao texto, a direção de Vera Holts é precisa, bem cuidada, pensada nos mínimos detalhes, cada fala, cada gesto tem uma intenção própria. Guilherme Leme está brilhante, conseguindo captar o espírito de um homem indiferente ao mundo. Sua narração/interpretação é perfeita, conseguindo o distanciamento necessário para que entendemos o que está se passando e ao mesmo tempo fazendo que todos caiam na arapuca de Camus e fazendo com que todos sintam piedade desse “estrangeiro”.
O figurino de Guilherme Leme e Vera Holts e o cenário de Aurora dos Campos são econômicos e não poderiam ser diferentes. Ali está o necessário, não imprimem uma marca, nem um estilo, é o básico, assim como a personagem. Vemos em cena uma cadeira e um terno, que Guilherme vai vestindo até chegar ao ápice do espetáculo. A luz de Maneco Quinderé é um pouco mais elaborada, mas sem grandes firulas, mais um acerto da produção.
Um espetáculo limpo, honesto, onde o menos só soma e faz com que a mensagem de Camus esteja presente no palco.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

In On It

Com direção de Enrique Dias, a peça teatral “In On It” cuja primeira temporada realiza-se no teatro “Oi Futuro” e é, evidentemente, um fenômeno de bilheteria e repercussão no meio artístico, traz para o palco o texto de Daniel MacIvor com tradução de Daniele Ávila e, em cena, os atores Emilio de Mello e Fernando Eiras.
A Dramaturgia desenvolve-se em duas camadas distintas de ficção e os dois atores que estão em cena perpassam por tais camadas. Num plano ficcional temos a história de um pai de família que descobre ser portador de uma doença incurável. Vemos esse homem numa tentativa sempre frustrada de compartilhar esta angústia com os seus comuns. Do médico ao filho, passando por sua esposa, seu velho pai e pelo filho de um homem que tem um caso com sua esposa, os encontros são sempre marcados por um ar de solidão, incomunicabilidade e impossibilidade de compartilhamento da ansiedade que há em se saber que vai morrer. No outro plano ficcional estão dois artistas, um ator bailarino e um diretor e autor de teatro que vão tecendo comentários sobre o primeiro plano. Este autor é quem cria a dramaturgia do primeiro plano enquanto recebe críticas recheadas de pessoalidade do ator bailarino que é também seu ex-namorado. Este ator percebe os lugares-comuns do autor e trata de desmistificar o modo de sua escrita e também seus modos cotidianos. E é aí que se encontra a chave de boa parte do jogo metalingüístico presente na peça. Jogo que sugere o próprio momento presente da manifestação teatral onde críticas e atitudes ficcionais se confundem com críticas e atitudes de ator para ator no momento mesmo da peça.
Materialmente, a mise-in-cene recorre a um reduzido conjunto de recursos utilizados de maneira a sugerir muito. Duas cadeiras, um casaco, dois copos de água, cigarros, um isqueiro, uma iluminação e uma sonoplastia impecáveis e dois atores vestindo camisa social e gravata. Desses elementos apenas é que surgirão todas as cenas onde a significação de tais objetos é móvel. Beber água, por exemplo, pode ser uma atitude de qualquer um dos dois planos ficcionais e pode também significar apenas que os atores têm sede porque falaram muito e precisam hidratar as cordas vocais. O casaco é o elemento de maior relevância na transição entre planos ficcionais e na troca de personagens entre os atores, ele é uma peça de roupa importante e característica do ator bailarino e aparece no texto de seu ex-namorado como uma reminiscência da relação dos dois. Outros traços surgidos nesse “texto de dentro do texto” irão sugerir reminiscências entre a vida do autor e sua obra.
A fragilidade da vida e das relações humanas enquanto tema ficcional e a relação também frágil das significações atribuídas a personagens e objetos no próprio fazer da cena: esses são os dois elementos mais essenciais da obra. Há também momentos curtos de interação com o público, requisitado a emitir opinião sobre uma cena ou mesmo para dar um nome a um personagem. Participação, contudo, limitada. Há que se deixar aqui claro ao público sedento de novas linguagens o seguinte paradoxo: mesmo a fuga do hermetismo e das formalidades teatrais pode incorrer em novos hermetismos e formalidades. Quem olhar “In On It” com desejo ávido de encontrar uma obra pouco convencional pode não se dar conta da convencionalidade de uma obra extremamente dependente de recursos técnicos e mesmo da caixa cênica para a criação de suas ambientações. A sonoplastia instaura muito marcantemente lugares da ficção, a iluminação também. E não há demérito nisso por si só. Apenas lanço nesse ponto o cuidado que devemos ter ao chamar de novo o que é, em verdade, reformulado. Também não há demérito em ser reformulado. Os menos atentos poderão dizer que “In On It” não trabalha a ilusão da cena porque o texto não é feito nos moldes de um “drama burguês”, linear, com personagens principais e coadjuvantes e etc. Mas o fenômeno da ilusão teatral está ali. E também não há demérito nisso.
É certo que há um direcionamento no sentido de brincar com as expectativas do público. A imprevisibilidade das personificações, personagens que ganham existência e nome no decorrer da cena, como é o caso de um velho que surge a partir de uma tremedeira na mão do ator. E também se foge a clichês em momentos em que atores falam ao telefone sem telefone e sem mímica barata, ou mesmo quando contracenam sem se olhar nos olhos e o fazem como se estivessem. Mas há que se entender nisso tudo, antes, um exercício de reformulação das convenções instauradoras da ilusão. A cena instaurada, a ilusão instaurada, desfeita e re-instaurada, por e a partir das interações entre os atores e um conjunto tal de recursos e elementos cênicos.

Maria Stuart - Imobilidade e movimento, aprisionamento e liberdade. Tensionamentos do trágico.

A montagem teatral de “Maria Stuart”, texto de Friedrich Shiller, tradução de Manuel Bandeira, direção Antonio Gilberto, tem por desafio maior a realização de uma obra extremamente verborrágica em tempos em que vivemos o império da imagem. Como propor nos dias atuais uma montagem de tão longa duração e tão marcantemente logocêntrica? A imensa massa textual é deglutida pelo público com relativa facilidade em virtude de um trabalho de esmerado empenho de compreensão da obra escrita por parte dos atores e também pela implementação de uma minuciosa limpeza gestual e visual da cena. A imensa gama de informações textuais contrasta-se com uma visualidade pouco ou nada apelativa.

A respeito da trama, diz Pedro Sussekind (preparador teórico junto com Roberto Machado) em texto anexado ao programa da peça, “Todo o enredo gira em torno de forças entre a condição sensível de aprisionamento e a dignidade moral”. Assim, vemos Maria Stuart (Julia Lemmertz), rainha da escócia capturada e enclausurada, aguardando a sentença a ser promulgada por sua prima e rainha da Inglaterra Elizabeth (Clarice Niskier). O fato de ambas serem lideres de Estado e mulheres em tempos de evidente dominação masculina, bem como o parentesco entre ambas, são os fatores que geram a expectativa de que Elizabeth se compadeça de Maria Stuart. Mas no caminho da esperança dessa absolvição encontra-se uma complexa teia de questões políticas. Elizabeth não pode se deixar compadecer facilmente porque assim daria prova a seus críticos de que, por ser mulher, não estaria apta a ser também governante por não saber tomar decisões firmes e livres de sentimentalismos. Daí uma composição coerentemente quase masculina de Clarice Niskier que transmite a perfeita imagem da rainha livre que, no entanto, é obrigada a sempre duvidar de seus impulsos e das opiniões de seus conselheiros. Daí sua rigidez de movimentos e sua impostação vocal quase sempre pausada e grave. Julia Lemmertz compõe também coerentemente uma Maria Stuart que oscila entre a ânsia de salvar-se através de uma absolvição que poderá ocorrer somente à custa de sua dignidade, pois se faz necessário calar sua revolta mais genuína a fim de conquistar um veredicto favorável de sua prima. Seus movimentos são sutis, e sua fragilidade reivindica sempre um estado máximo de exposição e privação a que um ser humano pode estar sujeito, um estado onde a sua capacidade retórica a favor da própria vida poderá ser abalada a qualquer momento por seus instintos mais básicos de reação à injustiça.

A privação dos impulsos, um caminhar sobre ovos para poder transitar entre conexões políticas da trama, são os elementos dramaturgicos que justificam a opção por uma direção de atores calcada numa atmosfera de contenção e controle gestual que se apresentam em oposição às extremas tensões internas das personagens. A relação cênica de economia gestual em face dos extremos movimentos do texto possibilita uma apreensão segura da trama por parte do público. A limpeza visual do cenário também.

Helio Eichbauer assina a Direção de Arte e a Cenografia. Marcelo Pies, o figurino. Tomás Ribas, a iluminação. No centro do palco encontra-se um enorme praticável retangular feito em degraus com placas de madeira aparentemente crua. A base, é claro, com área maior do que o topo. Este praticável servirá a momentos e locais diversos da ação, dependendo do posicionamento dos atores e da iluminação. Além deste praticável, a cenografia conta com um trono ( de Elizabeth ) e um baú ( com os pertences de Maria Stuart ), ambos também de madeira crua. A rotunda preta ao fundo cria ambientes distintos de acordo com a iluminação que se joga sobre ele. Seu cromatismo oscila unicamente entre o vermelho e o negro. Cores que estão também presentes nos figurinos dos atores, tais cores fazem menção tanto às cores do exército real inglês quanto possibilitam uma via metafórica de conexão com o sangue e a morte. A crueza das cores remetem ao ensejo romântico de busca pela essencialidade, pela naturalidade, pelo primitivismo, em detrimento do aprisionamento do indivíduo pelas linhas de força civilizatórias.

E é essa a essência trágica de Maria Stuart. Personagem que tenta sem sucesso agir de acordo com a razão, mas é traída por seu senso mais natural e básico de dignidade humana. E decorre daí paradoxalmente sua aniquilação e sua liberdade. Nas palavras de Shiller, como frisa Pedro Sussekind: “expulsos de toda fortificação que pode formar uma defesa física, atiramo-nos dentro da invencível fortaleza da nossa liberdade moral, e ganhamos uma segurança absoluta e infinita”.

“Pessoas” e Pessoa

Fernando Pessoa é o autor da montagem mais recente da companhia “Atores de Laura”. O espetáculo “Pessoas”, dirigido por Susanna Kruger, leva ao palco do Teatro Sérgio Porto quatro dos dramas estáticos do escritor luso: “O Marinheiro”, “Diálogo no Jardim do Palácio”, “Salomé” e a “A Morte do Príncipe”. As quatro peças são adaptadas e transformadas em monólogos, representadas por quatro atores. A encenação propõe uma instalação cênica dos quatro textos, é um circuito pelo qual todos os atores atravessam: são quatro pontos no espaço, um em cada canto da sala, onde as quatro cenas são interpretadas simultaneamente pelos atores. Ao final de cada monólogo, os atores se despem e caminham para o próximo cenário,onde colocarão outro figurino e interpretarão um outro personagem. A conclusão do espetáculo se dá quando todos os atores passarem por todas as peças, voltando ao ponto original. Ao entrar no teatro o público recebe junto com o programa um marcador de livros que contém uma espécie de instrução para auxiliar na experiência cênica. A proposta implica na autonomia do indivíduo, cada um pode ver a peça que quiser, há infinitas possibilidades: assistir a mesma cena pelos quatros atores, acompanhar o mesmo ator em cada cena, ver diferentes atores em diferentes cenas, ou se colocar no meio e ouvir tudo ao mesmo tempo, são alguns dos possíveis caminhos.
O Teatro Estático de Pessoa acredita na “revelação de almas sem a ação”, num espaço onde pode se explorar e talvez revelar a alma humana através das palavras pronunciadas por atores, e não por uma ação, um conflito exterior ou “perfeito enredo”. A direção de Susanna Kruger busca imprimir e evocar o Teatro Estático de Fernando Pessoa. A interpretação dos atores é minimalista, dotada de poucas ou quase nenhuma ação física. É evidente a diferença dos caminhos escolhidos por cada ator para cada cena, podemos ver quatro “Salomés” completamente distintas em cada rodada do circuito. Podemos ver como cada ator se relaciona em sua particularidade com o que está dizendo. Vemos os múltiplos sentidos das palavras de Pessoa, na boca e alma dos atores e pessoas, Luiz André Alvim, Verônica Reis, Márcio Fonseca e Adriana Schneider.
A encenação é ousada, afinal ouvir e interpretar apenas um texto de Pessoa já é difícil. “Pessoas” leva a cena quatro peças apresentadas simultaneamente, o que produz uma espécie de costura musical, onde palavras ora se misturam, ora se interrompem. A musicalidade é interessante, mas impossibilita em vários momentos a compreensão da cena, levando a um afastamento afetivo do público.
Os cenários e figurinos de Ronald Teixeira e Leobruno Gama, são adequados à proposta cênica, conferem uma simplicidade a cena. Os figurinos têm um melhor resultado em relação ao cenário, que parece ainda não estar pronto. Há uma visível diferença de elaboração e acabamento de uma cena para outra, o cenário do “Marinheiro”, por exemplo, composto por um pano no chão, com um vestido fazendo uma alusão à um corpo, uma cadeira, e um único peixe estranhamente pendurado no fundo, contrasta gravemente com o cenário de “Salomé”, repleto de caixas, objetos, entre eles, garrafa com vinho, tigela com água, e até uma massa de pão, todos utilizados pelos atores durante a cena.
“Pessoas” não é a melhor é a peça do “Atores de Laura”, mas é uma importante encenação do grupo. A companhia conhecida por montagens com grande número de atores em cena, direção marcada, e uma estética plástica forte, dá lugar para uma encenação mais sutil, simples e ao mesmo tempo extremamente complexa e audaciosa.

POSTANDO PARA DIANA HERZOG

Quadros de Cinema no Teatro.

Confronto Sangrenta Madrugada Sangrenta” é uma adaptação executada em conjunto por Domingos Oliveira, Luiz Eduardo Soares e Marcia Zanelatto do livro “A Elite da Tropa”. Esse mesmo texto literário foi adaptado para o cinema, resultando no filme “Tropa de Elite”, grande sucesso de crítica e bilheteria. Foi certamente um desafio para os autores pegar um trabalho aclamado pela crítica e pelo público e transpor para o teatro. A adaptação é bem feita, a história é contada em quadros, com eventuais narrações de Domingos Oliveira entre eles, que ajudam a esclarecer os fatos. A cena começa numa mesa de bar, um reencontro em entre os dois personagens chaves e antagônicos, sentados relembram os fatos da tal “Sangrenta Madrugada Sangrenta”. Entre black outs as cenas são apresentadas para o público em ordem cronológica. A história é bem construída, quadro sobre quadro, que juntos adquirem em ordem crescente tensão e entendimento dos fatos e dos personagens junto ao público.
A encenação de Domingos Oliveira confere uma característica cinematográfica aos quadros, trocas de cena, movimentações dos atores, trilha sonora, iluminação, entre outros. Alguns bem sucedidos, outros não tão bem aproveitados. A iluminação de Russinho é mal elaborada, ao invés de verticalizar essa idéia dos quadros cinematográficos no teatro, podendo definir melhor os limites, escolhendo o que está na penumbra, no escuro e no foco, a luz confunde. Fica no meio do caminho, nem ilumina corretamente - em alguns momentos vemos atores em cena fora da luz – nem consegue acompanhar a idéia da encenação.
O elenco é numeroso, são vários personagens, há uma demanda intensa de movimentação, agilidade e tensão dos atores. Muitos porém, não conseguem corresponder, é gritante a diferença entre os atores. Alguns demonstram experiência e defendem o personagem com brilho, fazem com verdade e propriedade desenvolvendo uma empatia com o público como Michel Bercovitch e Paulo Giadini e outros parecem não saber ao certo o que fazer ou como sustentar a cena, o texto é jogado fora, o corpo aparece “jogado fora” como o texto. Talvez a irregularidade dos atores seja o maior problema da encenação, essa afirmação fica clara quando percebemos que o espetáculo caminha numa curva crescente, começa devagar, confuso e aos poucos vai acelerando, desenvolvendo uma relação e atenção com a platéia. Nesse mesmo início lento e apático é quando vemos as cenas com maior número de atores e personagens, e já o final, parte mais contundente termina com um ator em cena.
Os cenários e figurinos de Ronald Teixeira são bem simples e funcionais, o primeiro melhor do que o segundo. A opção pelo preto e branco nos objetos, adereços e tecidos fortalece o clima cinematográfico da encenação. A simplicidade do figurino é problemática em vários momentos, porque perde a teatralidade, parece roupa do próprio ator.
A temática da história é extremamente atual, e bem sucedida quando se propõe colocar em questão, o que e como vivemos hoje. Faz um recorte preciso e realista da condição em que se encontra a população carioca. Trabalhos como este são imprescindíveis nos dias atuais para evocar discussões e possibilitar transformações. No teatro do Sesc Copacabana podemos ver juntos, o encenador e cineasta Domingos Oliveira, apresentando talvez uma de suas obras mais políticas.

POSTANDO PARA DIANA HERZOG

Um Rock bem comportado

Rock’n’roll a peça de Tom Stoppard segue a tendência da nova história cultural fazendo um recorte sobre uma história individual de dois personagens – Jan e Max para traçar um perfil da resistência comunista a ditadura da Tchecoslováquia. Jan, um jovem comunista, pupilo de Max em Cambridge volta para seu país para tentar salva-lo da ditadura soviética que acabara de se instalar. Em sua mala leva ideologias e discos de rock – representantes de uma liberdade de expressão impossível naquele momento. E é através do Rock que Stoppard (que também é o responsável pela trilha musical) vai conduzindo a trama até o ano de 1990.
A direção de Felipe Vidal e Tato Consorti é conservadora demais o que acaba reduzindo as possibilidades cênicas e faz com que o ritmo da peça fique arrastado, principalmente na primeira metade do espetáculo. As marcações ficam claras e a movimentação na cena é bastante reduzida, o que traz mais ênfase ao texto que extremamente politizado e datado não é de fácil acesso a um público que não possua a priori as referencias citadas pelos atores.
O rock que seria o elo entre todos os elementos da peça aparece em telões para demarcar passagem de tempo e o público logo no início do primeiro ato percebe que também é um artifício utilizado para permitir a troca de cenários. E então essa música, que encarna tão bem um espírito revolucionário e transgressor dos personagens e da peça em si, se torna mero objeto figurativo. Um mini-clip para “passar o tempo”. E o dialógo entre a trilha sonora de Stoppard com grandes do jovem e rebelde rock’n’roll perde totalmente o dialogo com o que está em cena.
O cenário de Sergio Marimba que a princípio se apresenta como uma interessante possibilidade cênica dado a sua mobilidade acaba encarcerando os atores em dois blocos distintos (o jardim e a sala de estar em Cambridge e o quarto e a sala de Praga). O figurino de Nello Marrese flui bem com o cenário e consegue levar o público muito bem através da passagem no tempo.
Thiago Fragoso está bem no papel de Jan, mas seu envelhecimento em cena soa forçado dada sua vitalidade na interpretação. Gisele Fróes consegue dar vida muito bem a Eleonora, mas com Ismênia é que se destaca melhorando o ritmo da peça no segundo ato encarnando uma personagem, leve engraçada sem se tornar boba. Otavio Augusto, ator experiente é o fio condutor de toda a peça mostrando ao público toda a trajetória de idealismo e desilusões de Max, um personagem com “a idade da Revolução”.
Enfim, o espetáculo fala de liberdade, revolução e música mas faltou a encenação se arriscar um pouco mais, sair de um lugar comportado e encarar sem medo o espírito do bom e velho rock’n’roll.

domingo, 21 de junho de 2009

CLOWNSSICOS

UMA CRÍTICA SOBRE A CRÍTICA

É bem verdade que, como profissional de teatro e fazedor dessa difícil e cativante engenhoca de ilusões, por vezes considerei o papel do crítico e sua presença ameaçadora em alguns dos meus espetáculos quase um desrespeito a todo o meu empenho profissional. Com que direito uma pessoa representando um veículo de comunicação assiste ao meu espetáculo e fala dele o que bem entende aos seus leitores, sem saber pormenores do processo ou de todas as dificuldades que envolve esse “fazer teatral”?

É uma questão que abre uma gama de brechas para discussões, algumas mais fundamentadas que outras, e onde cada qual – profissionais de teatro e o crítico do jornal – detém muitos argumentos visando uma forma de qualificar a arte teatral produzida e aberta ao público. Claro que o crítico e seu trabalho são melhores “digeridos” por todos da peça criticada se a crítica é favorável, elogiosa. Porém, se a crítica “detonar” a peça, pobre crítico. Difícil refazer sua fama de “mau”.

Mas no caso da crítica feita por Barbara Heliodora em 04/05/09 sob o título 'Clownssicos': com apelação e deboche, Cia. do Giro apresenta um constrangedor espetáculo, fica difícil sair do teatro sem a tal fama de “mau”. Ou melhor, quase impossível. Porque a mesma companhia gaúcha que apresentou o comentado e belo espetáculo “Larvárias” no ano passado, este ano trouxe ao Rio de Janeiro, como a própria Barbara disse, “um dos piores e mais constrangedores espetáculos que testemunhei em minha longa carreira de espectadora”. E concordo com ela em sua definição “maldosa” sobre a peça, pois Clownssicos de fato desonra e desqualifica a inteligente e crítica arte do clown, além de desmoralizar irresponsavelmente com parte da história da dramaturgia ocidental e seus autores.

No espetáculo, o clown não passa de uma figura grotesca e levianamente debochada, rompendo com limites imperdoáveis para esta arte, como é visto no final, onde uma parte maior do elenco se desnuda ainda enquanto clowns e durante os agradecimentos. Ou seja, falta unidade até nisso. A tal nudez transgressora não é uma proposta comum a todos. Mas independente disso, qualquer estudioso mais dedicado ao tema sabe da gravidade de se desnudar um palhaço em cena, um clown. E a Cia. do Giro faz isso acreditando estar reinventando a roda no teatro. Lamentável.

E tão lamentável quanto isso é ver investimentos em cenários e figurinos em prol do nada. Tempo e dinheiro desperdiçados num projeto que aparentemente tinha muito para ser uma boa proposta. Ao menos a ideia inicial era boa, mesmo que um tanto quanto equivocada, de clowns frustrados por serem apenas palhaços conseguirem realizar o seu maior sonho: interpretar papéis dramáticos e/ou trágicos da dramaturgia universal e alcançar um maior respaldo profissional. Se o caminho escolhido não fosse o deboche raso, talvez eles tivessem chegado a um produto artístico de melhor qualidade e conteúdo.

Enfim, e com “maldades” à parte, Barbara e eu concordamos que deva haver maior responsabilidade nas produções teatrais, sobretudo nas de companhias como a Cia. do Giro, tida como companhias com processos baseados em pesquisas. Deve-se ter mais rigor na qualidade e na feitura desses espetáculos, sem perder a liberdade da criação artística, mas levando em consideração que há um público inteligente ou em processo de formação de platéias interessado em boas produções. Portanto, qualidade já e menos palhaçadas gratuitas.

"O Estrangeiro"

O Estrangeiro


A atual adaptação para o teatro da primorosa obra de um dos maiores escritores da língua francesa do séc XX ,Albert Camus, dirigida por Vera Holtz e interpretada por Guilherme Leme é uma montagem bastante corajosa e audaciosa, e não poderia ser diferente pois, além de ter sido contemplada com o prêmio Nobel, foi considerada por Sartre como a “Ilustração da existência humana”.

A atmosfera do que está por vir é anunciada discretamente pela cenógrafa Aurora dos Campos e pelo iluminador Maneco Quinderé com os poucos elementos que já visualizamos em cena :Uma cadeira posicionada no centro de um quadrilátero igualmente isolado pela imensidão negra do material escolhido para recobrir o restante do palco. A luz fluorescente colocada imediatamente acima do foco central da cena é filtrada por uma placa de lisolene proporcional às medidas do piso ilhado - tudo se encontra simetricamente ordenado.

O monólogo se inicia no escuro total .Tais recursos utilizados servem tanto para conduzir o espectador até um estado apurado de percepção das eloqüentes palavras, como para transportar o ouvinte a uma escuridão angustiante e introdutória do universo individual e tão peculiar desse intrigante personagem literário. A platéia é mantida no breu por cerca de três minutos e utiliza unicamente seu mecanismo sensorial auditivo;atenta apenas ao que é pronunciado.

Aos poucos as luzes se acendem e à medida que o personagem ilustra seu mundo e apresenta os coadjuvantes de sua solitária história vou tomando consciência de que o universo criado para ilustrar a obra trilha um caminho coerente àquele solitário universo,meio absurdo, criado por Camus.

Esse personagem, apesar de ser fruto do contexto histórico de pós-guerra (momento propício à revisão,reconstrução e crítica ,que parte de uma classe pensadora, a mecanismos totalitários e decadentes utilizados como forma de controle e dominação social presentes nos campos estatal, político,moral e religioso) se mantém extremamente atual, pois suas ações não são justificadas como efeito de uma causa específica de um tempo ou local ; Meursault , personagem que aparentemente pode ser visto como apático e insensível,é na verdade uma criatura que não procura aprovação alheia;portanto não representa, é impossivelmente verdadeiro e cru em suas atitudes,é um assassino contraditoriamente desprovido de maldade,quase ingênuo.

A postura de indiferença e desapego do narrador em relação ao seu mundo e às pessoas com quem ele mantém algum vínculo é preservada na contida atuação de Guilherme Leme, e mesmo quando partes do texto original são sublimadas (na adapatação do dinamarquês Morten KirKov traduzida por Liane Lazoski) não se perde o tom crítico e sutil contido na obra aos meios utilizados como instrumento mantenedor de uma conduta padronizada que sirva de reconhecimento e garantia de auto-preservação para a sociedade.

O que pode parecer algo negativo no espetáculo - exigir atenção e concentração na narrativa e oferecer poucos mecanismos dinâmicos visuais de ação para a quebra da monotonia - é ,sem dúvida, uma escolha certeira e que contribui em vários aspectos para e leitura do todo minimalista: O ator se mantém ,na maior parte da peça,sentado em um banco e à medida que expõe os fatos acontecidos,vai se vestindo lentamente,sem demonstrar nenhuma indignação com a sentença dada e preste a ser executada. O cubo da cena serve como metáfora de seu isolamento não limitado apenas à sua condição de prisioneiro;ele é um homem sozinho em sua existência e seu tom monocórdio na narrativa resume sua indiferença a seu estado e à humanidade.

O “Estrangeiro” de Vera Holtz é um espetáculo despretensioso que pode agradar ao público que busca fidelidade na ilustração tridimensional de uma obra literária,mas ,em contrapartida, pode aborrecer e entediar àqueles mais sedentos de montagens audaciosas e inovadoras que explorem outras possibilidades e mecanismos de comunicação inerentes a essa manifestação artística tão peculiar que é o teatro.

anti-dinheiro grátis, uma crítica

Michel Melamed em Dinheiro grátis

Anti-dinheiro grátis é a remontagem de Dinheiro-grátis, segunda parte da Trilogia Brasileira conjunto de três peças do ator/poeta Michel Melamed,que inclui “regurgitofagia” e “homemúsica”. Na primeira montagem de Dinheiro-grátis, o público era pedido, solicitado, elogiado, flertado, agradado, coagido e psicologicamente torturado a doar algum dinheiro que iria para uma cartola no centro do palco que no final seria queimado num momento ritualístico, quase catártico onde talvez se espurgaria os males e a sacralização do papel-dinheiro. Tudo no melhor estilo Melamed, cheio de humor, sarcasmo e ironia.

Entretanto, a peça foi divulgada como “anti Dinheiro-grátis”, o que teoricamente não seria o oposto do Dinheiro-grátis, mas uma negação dele, como um duplo, um outro, ou o mesmo às avessas. Foi exatamente o que se pode ver. Antes do espetáculo se é oferecido a fumar no palco por alguma quantia em dinheiro, uma vez que no palco se pode fumar, na platéia não. Ao lado da cartola, um pouco mais a frente está um pote de água daqueles de cachorro e do outro lado o cinzeiro. Melamed está pela platéia pedindo dinheiro, quando pede para uma senhora uma moeda de um real e ela oferece um centavo; é quando Melamed toma o canto da cena, no fim das escadas que dão acesso e faz um discurso anti-um centavo alegando que um centavo não é dinheiro, é “baixo astral”, e nos faz (novamente) de um jeito ritualístico nos livrar das moedas, fazendo com que juntos as joguemos no palco, incluindo agora moedas de outro valor.

O espetáculo se inicia, no molde do dinheiro-grátis, numa simulação de um show de hip-hop, aos gritos de “vai tomar no cu, PAZ”, e mergulha numa reflexão sobre fatos básicos da vida, coisas que não dependem do dinheiro para a existência como “Matar ou morrer? Matar, vamos matar, sair na Graça Aranha degolando todo mundo. Morrer, vamos morrer, não vale a pena viver, vamos morrer.”

Enfim, há o correr de um texto que passeia entre o poético e o descontraído, o reflexivo e o humorístico até que culmina na parte em que seria a deixa para a entrada no fim do espetáculo, na parte do dinheiro-grátis. É quando Melamed pergunta: “Cadê os miseráveis daqui?” Todos gritam afirmativamente, daí ele diz: “E desde quando miseráveis vão ao teatro?” Todos caem no riso, inclusive eu, e ele manda: “Não é esse o teatro que eu quero fazer”. Na mesma hora, um outro tom toma o espetáculo, primeiro vindo da platéia que se sente culpada por ter rido. A partir daí Melamed volta com uma mesa, e sentado em forma de aula teórica, crônica, simpósio, faz um exercício de refletir sua própria obra e tentar observar a partir da trilogia qual o teatro que ele gostaria de fazer, qual teatro ele havia sonhado e qual ele havia conseguido e principalmente, qual o grau de satisfação que havia naquele teatro, enquanto que no fundo numa projeção passam trechos da primeira montagem, sem o anti. Num breve texto sobre o amor, num tom seco, Melamed chega a dizer: “o amor te come e arrota na tua cara.”
Pode-se dizer que Michel Melamed conseguiu amernizar o efeito ritualístico daquele final, conseguiu tirar algo que começa como uma forma de contestação mas que logo depois, como qualquer outra obra, é absorvida e transformada em carimbo, tatuagem e prende à obra tornando o próprio autor refém de si mesmo, pois o que acontece é que a queima do dinheiro se torna o elemento mais importante da obra, então mudar esse final para uma parte reflexiva é uma forma de burlar esse efeito.

Pouco depois, ele se levanta, agradece e sai. Grande parte da platéia não entende que é o fim, não consegue aplaudir, muita gente fica revoltada, pois espera de Melamed outra coisa, humor, charme, ironia, e é isso que ele tira da platéia que agora sente raiva. Algumas pessoas chegam a ameaçar querer pedir o dinheiro de volta, outros querem esperar para conversar com ele, mas no fim, se rendem pois a semente reflexiva já estava plantada. Passeando por blogs à procura de opiniões, encontrei duas: uma positiva e outra negativa, fazendo um bom contraponto para reflexão. Eis:http://amycouto.blogspot.com/2009/06/eu-nao-faco-silencio-porque-amo-tudo.html - http://futurosamores.blogspot.com/2009/06/eu-nunca-fiz-critica-de-teatro-mas.html

No fim, a impressão é positiva, mas a sensação não, pois a reflexão que chega num embate violento com a emoção é quase um estupro, é como uma flecha apontada para gente, mas que apesar de todos os sentimentos que sentimos, é absolutamente importante, e mais, é talvez essencial.