domingo, 24 de maio de 2009

A boa música não envelhece - crítica sobre a peça Rock´n´Roll

Escrito por Tom Stoppard, Rock´n´Roll conta a história de Max, um professor da Universidade de Cambridge (árduo defensor dos ideais marxistas), e Jan, estudante tcheco (que tem o rock´n´roll como sua grande paixão).  A trama começa no ano de 1968 e termina em 1990; localizando-se em Praga, na República Tcheca (onde a Banda The Plastic People of the Universe torna-se símbolo de resistência ao autoritarismo comunista) e em Cambridge, Inglaterra (onde três gerações da família do professor marxista vivem seus dilemas).

A montagem dirigida por Felipe Vidal (que também assina a tradução do texto) e Tato Consorti, apresenta-se como extremamente convencional.  Dessa forma, o que se vê no palco é uma representação que foge das ousadias ou qualquer espécie de personalismo adotado pelos diretores; cuja intenção parece ser contar a história da melhor forma possível, sem correr o risco de que alguma coisa não seja bem compreendida. A ação tem ritmo crescente, combinando com a proposta do texto, de ir atravessando diferentes épocas, sendo uma espécie de linha do tempo. Isso, porém, pode ser um problema: Se a peça vai ganhando força e ritmo conforme seu desenrolar, sua primeira parte acaba sendo arrastada, dispersa e cansativa. Conforme os anos (e os acontecimentos) vão se sucedendo, ganha-se força, dinamismo e consequentemente a atenção do público.

As mudanças de cena são pontuadas com músicas e projeções; numa linguagem que remete aos videoclipes, ilustrando os momentos históricos, políticos e sociais de cada época. A trilha sonora (também assinada por Tom Stoppard) é indiscutivelmente brilhante, trazendo ao público grandes clássicos do rock como Syd Barret, Bob Dylan, Rolling Stones, Pink Floyd, The Doors, Velvet Underground, John Lennon, Beatles, U2, entre outros. Os vídeos (elaborados pela Pavê Gastronomia Visual) também ajudam na compreensão dos fatos e localização histórica, e merecem destaque. O único problema é que são excessivos.

 Tomás Ribas faz uma iluminação de extrema competência, criando sensações na plateia e complementando a cenografia. Sérgio Marimba opta por fazer um cenário com praticáveis móveis, mas as inúmeras vezes em que eles precisam entrar e sair de cena acabam se configurando um problema, exigindo um tempo maior para as transições. O cenário fica perdido, uma vez que não é nem totalmente realista, nem totalmente simbólico, mas sim um híbrido dos dois.  Apesar disso, a direção de arte é competente e cuidadosa.

Otávio Augusto - no papel do professor Max - é um verdadeiro maestro em cena. Além de proporcionar à plateia uma interpretação indefectível, generosamente abre espaço para que seus companheiros também possam brilhar. Espaço esse que é sabiamente aproveitado por Gisele Fróes (Eleanor e Esme adulta), roubando todas as cenas em que está presente, e quase conseguindo ofuscar tudo o que está á sua volta no segundo ato. Em alguns momentos sua interpretação torna-se perigosamente maior do que a cena; tendo o público como seu fiel cúmplice. Thiago Fragoso faz um Jan empenhado e correto, mas não imprime ao estudante tcheco a força necessária. Apesar de seu personagem envelhecer ao longo da trama, esse envelhecimento só é percebido através da caracterização, uma vez que a interpretação mantém-se a mesma do início ao fim.  Mas Thiago não é o único que não consegue envelhecer; e uma certeza nos domina ao fim do espetáculo: Quanto mais representativa uma música é do seu tempo, mais atemporal ela se torna. 

Inveja dos Anjos - Um Armazém de Memórias

Três amigos – Laura, Tomás e Cecília – estão reunidos para uma importante cerimônia: destruir todas as lembranças que os deixem infelizes. Logo perceberam que essa tarefa além de árdua é impossível. A memória, algo pessoal e compartilhavel, mas nunca transferível, não permite ser totalmente destruída – pelo menos não conscientemente. E através dessas próprias memórias que a narrativa se desenrola. Os amores que retornam, um passado que tenta a todo custo ser escondido mas que cada vez parece mais presente, uma filha vinda de uma experiência já esquecida, os gostos da infância, as historias ouvidas ou lidas... Tudo isso passa aos nossos olhos durante os 105 minutos de espetáculo que consegue prender a atenção do público como se só tivessem se passado alguns minutos. A linha de ferro responsável por muitos encontros e despedidas assiste também é responsável por muitos reencontros e “redespedidas” dos personagens – muitas das vezes – deles consigo mesmos.

O grupo é coeso e a direção de Paulo Moraes trabalha muito bem nesse sentido – explorando uma afinidade que vem de anos de trabalho. A interpretação é bastante afinada, mas claro, alguns destaques são inevitáveis. Verônica Rocha se sai muito bem num papel muito perigoso (o da pequena Natália de apenas 9 anos). A atriz encontra uma forma eficiente diante da sutileza que é interpretar um papel infantil sem se tornar caricata. Simone Vianna impressiona em seu trabalho corporal. Existem momentos em que consegue incorporar dois personagens completamente ao mesmo tempo – algo extremamente difícil mas que surge com uma naturalidade impar, muitas fazendo com que o publico quase consiga ver dois corpos em cena.

A peça possui inúmeros elementos de ilusionismo que encantam – mérito de Richard Goulart – o apito do trem, a famosa “luz do fim do túnel”, os carrinhos que se movimentam pelos trilhos, a lúdica montanha-russa (que nos leva de volta a infância)... O cenário de Paulo de Moraes e Carla Berri é provocador (com trilhos que sobem pelas paredes) e estimulante. E os atores sabem se apropriar de todas as suas possibilidades cênicas. A luz de Maneco Quinderé é muito bem conduzida e dialoga com o cenário muito bem. A trilha sonora de Rico Viana – cheia de clichês – cumpre bem seu papel de trazer a tona as memórias dos espectadores. Aliás, todos os elementos da peça buscam isso. È uma grande rememoração coletiva que emociona. Quando as luzes se acendem pode-se ver muitos olhos úmidos na platéia e muitos abraços ao sair do teatro. Com certeza, um espetáculo para se guardar na memória.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

SOBRE O SUICÍDIO: O QUE POSSO SABER?

Marx (1818-1893) interessou-se, por volta dos vinte e oito anos, pela questão do suicídio. Para estudá-la recorreu aos escritos de um ex-arquivista francês − Jacques Peuchet: Mémoires Tires des Arquives de la Police de Paris, publicado em 1938. Diante da compilação dos episódios ligados a suicídios na Paris oitocentista, Marx entusiasma-se com os agudos comentários de Peuchet, que detecta no suicídio a reverberação sintomática de uma sociedade doente.
O resultado desse estudo foi publicado numa revista proletária alemã, em 1846. O ensaio intitulado Peuchet: Von Sebstmord, foi publicado pela Editora Boitempo, em 2003, com tradução direta do alemão.
A tensão incontornável que conecta o político e o privado, o público e o particular, o social e o psíquico parece expressar-se, nesses relatos, pelo grande número de casos de suicídio envolvendo mulheres jovens, de famílias burguesas, a maioria por afogamento, quase sempre no Rio Sena.
A Cia. Ensaio Aberto, dona de uma longa trajetória de trabalhos focados, em sua maioria, nos embates político-existenciais entre o indivíduo e a sociedade foi buscar nesse texto de Marx/Peuchet as diretrizes para a encenação, com o mesmo título. "Sobre o Suicídio", estreou em abril de 2009 no Espaço SESC, sob a direção de Luís Fernando Lobo que − simultaneamente ao espetáculo − promoveu um ciclo de debates sobre o suicídio, em parceria com o Ministério da Saúde.
Sua iniciativa é mais do que louvável, atuando na contramão da perigosa indiferença que nos ameaça com o silêncio cotidiano sobre essa e tantas outras questões inadiáveis.
Se hoje a regra única é o gozo (o consumo), somos mergulhados numa indiferença que acaba por validar a banalidade do mal, uma vez que nosso horizonte reduz-se à meta da saciedade.
"Matar-se é coisa banal/Pode-se conversar com a lavadeira sobre isso/Discutir com um amigo os prós e os contras", é o que nos diz Brecht em sua "Epístola sobre o suicídio". Hoje, em sites na Internet, oferece-se a quem estiver interessado em se matar as instruções necessárias, as diferentes maneiras de obter os efeitos desejados, um verdadeiro "centro de valorização da morte", como podemos constatar em suicidio.com, reportagem de Eliana Brum (Revista Época, 2008).
Essa dimensão perturbadora da contemporaneidade parece atravessar a cena inicial da peça de Fernando Lobo. Numa espécie de prólogo, há uma projeção de imagens sobre o quadrado branco inscrito no centro da arena onde acontece a encenação: um grande olho se abre e, simultaneamente, multiplica-se uma rede de vozes em sonoridades de idiomas diversos; aos poucos vamos distinguindo pedaços de frases, inflexões variadas, protestos, ordens, lamentos, gemidos, fonemas, fórmulas que se repetem sob a fixidez inabalável desse olho que tudo vê. A cena se dá num palco mergulhado em quase-escuridão e parece instalar, pela sobreposição desse olhar eternamente vigilante e a insistência automática das vozes, uma corrente de expectativa sobre a complexidade do tema que nos dispomos a enfrentar. Estão abertos, pois, os trabalhos. Lá vamos nós...
A cena seguinte, no entanto, quebrará essa disponibilidade da platéia. Após a entrada dos quatro atores − Fernanda Avelar, Tuca Moraes, Françoise Berlanger e o próprio Luís Fernando Lobo − inicia-se a narração dos casos relatados por Marx/Peuchet.
O volume de voz da narradora do primeiro caso parece desproporcional ao espaço em que estamos instalados, mas é, justamente, a inflexão de sua voz que, num só golpe, desfaz em poucos segundos a disposição da recepção anteriormente descrita. A enunciação da atriz indica imediatamente ao espectador, o lugar de uma certeza, que não parece dialetizável − lugar que designa "a porta voz dos injustiçados personagens suicidas" − ela, a própria narradora − e remete, sem hesitação, e no mesmo ato, os espectadores, a platéia, a um lugar que é também previamente marcado: o de "sociedade repressora".
A delimitação desses "lugares" não se dá como jogo cênico entre palco e platéia; não se dá como colocação de funções provisórias, intercambiáveis − o que poderia − quem sabe? − produzir uma dinâmica interessante entre o espectador e a cena. A rigidez dessa inflexão parece coagular implacavelmente os fluxos de sentidos que poderiam fertilizar a cena, e contamina todo o espetáculo.
Semelhante à certeza suicida, que finda por fixar o sujeito a um significante não dialetizável, que o condena a morte, penso que a Cia. de Ensaio Aberto não se permitir desdobrar as questões suscitadas pelo texto, cristalizando um suposto "significado" que reduz a complexidade de uma questão como o suicídio à dualidade opressor/oprimido, vítima/algoz.
As regras de atuação sugeridas por Brecth sublinham a ‘’estranheza’’ no ato aparentemente banal; é preciso, sim, trazer o cotidiano para um âmbito que ultrapasse a evidência; isso não significa que se renuncie à empatia do espectador. Se é isso o que nos diz Brecht, nos seus Estudos sobre Teatro, muita confusão resta a ser desfeita − ou talvez refeita! − em torno do seu famosíssimo conceito de "distanciamento". No caso desse espetáculo , uma utilização equivocada do recurso, gera o efeito contrário: a adesão sem fissuras entre o narrador(a) e a narrativa, a designação peremptória dos "lugares" do emissor e do receptor da cena impedem que uma escuta crítica se dê: não há brechas, ambiguidades, indeterminações que solicitem o espectador; de fato, essa voz não se dirige a ele. Assim, a platéia antes interessada, passa daí em diante a − educadamente − "suportar a cena".
A entrada de uma segunda atriz, ilustrará, por assim dizer, o relato. Assistimos, então, a figuração do suicídio de uma jovem e, embora a modulação produzida na cena pelos diferentes traços, corpos, timbres das atrizes movimentem a nossa atenção, não se produzem novas interrogações ou alguma variação significativa no tônus afetivo da recepção.
Assistimos, apáticos, ao "suicídio" da jovem vítima do massacre familiar: acendem-se as luzes laterais de uma escada, num dos pontos cardeais da cena, e a atriz encaminha-se em direção a essa luz. Eis o afogamento no Sena.
O século XIX em Paris foi palco histórico onde uma nova personagem faz sua aparição: a’’Mulher Nervosa’’, deslocada em relação ao único papel a ela reservados pelos dicursos vigentes- o de Mãe, Rainha do Lar.Segundo Foulcaut, esse é um momento em que se acirra a produção dos discursos que pretendem fixar uma verdade sobre a ‘’natureza feminina’’, e o controle de seus excessos . A literatura ,e o teatro multiplicam as imagens que darão suporte à construção das máscaras/personagens com as quais as mulheres ensaiam e tentam construir novas formas de subjetivação.Não é a toa que Madame Bovary é publicado na França em 1856.
"Sobre o Suicídio" acerta no recorte do tema − o suicídio de mulheres no século XIX e, em certos momentos chega a produzir indícios ou esboços de uma cena que poderia ousar mais, sem prescindir do rigor e da delicadeza. As cenas da atriz Françoise Berlanger apontam nessa direção. Os fragmentos de canção utilizados pela atriz, algo na leveza e no desamparo de sua movimentação, o uso do olhar e da voz reinjetam alguma voltagem poética na cena. À ausência de voz das suicidas, opõe-se o grito da atriz.
A luz, as interferências da trilha sonora, a movimentação cênica, os figurinos são corretos, funcionais. Talvez corretos demais, essa é a questão. Não é possível tratar-se de um tema tão perturbador, sem que se corra, ao encenar, algum risco. Luís Fernando Lobo parece excessivamente reverente a Marx´/Peuchet, e, sem explorar as ressonâncias que o livro provoca, permite-se apenas, como encenador, o que poderia ser tomado como "um breve comentário à margem do texto": as bonecas, signos recorrentes, ora na palidez, no ar de boneca antiga de uma atriz, ora no objeto-esquife que carrega com uma boneca dentro d'água, ou ainda na chuva de pequenas bonequinhas de pano que marcam a pulsação cruel das estatísticas sobre suicídio atuais.
Marx, não esgotou o assunto.
Menos de cinquenta anos depois, essas mulheres encontrarão a escuta de Freud e, com ele, inventarão a Psicanálise.

Annabel Albernaz

quarta-feira, 20 de maio de 2009

PLAY

O que leva um dramaturgo a escrever um texto inspirado num bem-sucedido e premiado roteiro de cinema? Podemos pensar em várias possibilidades, das mais instigantes às menos nobres. Poderia ser a de ampliar a discussão das questões propostas pelo original, considerando-se os vinte anos passados de seu lançamento, ou a de lançar um outro olhar sobre o tema, mostrando ângulos de visão não explorados anteriormente, ou ainda a de driblar uma questão de direitos autorais (caros demais ou não cedidos), renomeando o texto sob o epíteto de “inspirado em”.
Inspirado em “sexo, mentiras e videotape” (assim mesmo, em minúsculas, ao estilo de e. e. cummings), filme escrito e dirigido por Steven Soderbergh, o texto “Play”, de Rodrigo Nogueira, dirigido por Ivan Sugahara, não é claro sobre suas intenções e leva desvantagem na inevitável comparação com o material original. O filme de Soderbergh propunha uma reflexão sobre os modelos de relacionamento da sociedade contemporânea, a partir do quadrado amoroso formado por um homem impotente que se satisfaz filmando depoimentos de mulheres sobre intimidades sexuais, uma dona-de-casa frustrada e frígida, seu marido infiel e sua irmã liberada. Discutia, como afirma Sugahara no programa do espetáculo, “a banalização do sexo, o hábito da mentira e o culto da imagem”. A versão de Rodrigo Nogueira guarda inúmeras semelhanças com o original de Soderbergh, que vão desde os nomes dos personagens e às relações desenvolvidas entre eles até situações inteiras, sem que com isso acrescente nada de novo ou interessante ao material já desenvolvido pelo cineasta. O que Nogueira consegue é banalizar o roteiro do filme, diminuir seu interesse e torná-lo inconsistente ao transformar tudo em uma comédia de costumes com espaço para exibições pessoais de histrionismo. Há também oportunidade para a utilização de algo que já começa a se tornar um clichê do teatro contemporâneo: a mistura entre ficção e depoimentos reais, com o intuito de deixar o espectador em dúvida sobre o que é verdadeiro ou inventado. O depoimento de Cynthia (Maria Maya) sobre a separação dos pais é um exemplo disso.
Ivan Sugahara, que já demonstrou ser um diretor criativo, inteligente e instigante, deixa inúmeras pontas soltas na encenação, como o uso dos depoimentos gravados em vídeo, que não estabelecem uma relação maior com o que acontece em cena e o uso dos módulos de mesas e cadeiras que, a princípio, deveriam definir os vários ambientes onde se desenrola a ação da peça (o apartamento de Cynthia, a casa de Ana e João, o imóvel que está para alugar), mas acabam mais confundindo do que delimitando espaços cênicos. Além disso, não consegue controlar os excessos de alguns integrantes do elenco. Neste, se destacam os trabalhos de Jonas Gadelha, apropriadamente contido e econômico, conferindo dubiedade ao misterioso homem que filma mulheres e Maria Maya, com um ótimo timing de comédia, desenvolvendo um humor sutil (em especial na cena do jantar).
O que fica dessa adaptação do roteiro de Steven Soderbergh é a vontade de rever o filme. Sem fazê-lo não podemos avaliar se o impacto sentido nos anos 80 seria o mesmo hoje (provavelmente não). Mas com certeza, ele ainda oferece muito mais do que Rodrigo Nogueira pôde nos oferecer.

terça-feira, 19 de maio de 2009

A Filha do Teatro
Crítica Teatral

Por: Marcelo Atahualpa


Encenada pela cia do Teatro do Pequeno Gesto e sob direção de Antônio Guedes, texto Luis Augusto dos Reis e dramaturgismo de Fátima Saadi, a peça “A Filha do Teatro”, é executada com notável clareza e aparente simplicidade. Três atrizes narram a trama da peça e dividem entre si os depoimentos de três personagens afetadas pelo assassinato de uma diretora de teatro. As personagens expõem perspectivas distintas sobre o mesmo acontecimento, bem como as conseqüências de tal fato em suas vidas. Existem ainda outras personagens periféricas que são citadas e interferem na trama, mas não ganham voz.
A obra explora com maestria zonas fronteiriças do fenômeno teatral. E diversos aspectos que poderiam servir de entrave à compreensão do público são superados de maneira nada forçada, nem forçosa. Os supostos entraves à recepção poderiam ser inúmeros. A começar por uma dramaturgia onde os nomes das três personagens principais não estão dados, um modo de narrar com pouco ou nenhum envolvimento emotivo, um jogo sutil de personificação residual e rotativa, bem como uma cenografia que pouco ilustra a trama, mas que sugere jogos múltiplos de metalinguagem.
E apesar de tais características pouco ou nada confortáveis a quem deseja uma recepção fácil e óbvia, tudo parece extremamente claro. Ao espectador comum é dada a chance de entender, torcer e se comover com a história contada. Isso porque A Filha do Teatro é uma obra que vence o próprio complexo emaranhado teórico por meio de uma estética nítida, mas não rasa. As atrizes narram a história de maneira alternada, simultânea ou entrecortada. E o fazem de maneira muito franca. Onde poderia haver falsidades e excessos melodramáticos, existem apenas vozes extremamente audíveis ( não gritadas ) e olhares penetrantes, envolventes, e repito, francos.
O espaço da encenação é uma sala retangular onde nos dois extremos mais distantes então duas arquibancadas de platéia. Entre cada platéia e o centro do retângulo foram colocadas 3 molduras de tamanhos decrescentes. Assim, de cada platéia ao centro do retângulo, tem-se uma perspectiva. Na moldura central há um pano semitransparente (voal) onde são projetadas imagens hora gravadas, hora captadas ao vivo por uma câmera que está em cena e é manuseada pelas atrizes. Cada lado de platéia vê no outro lado o avesso da própria perspectiva. O que sintetiza magnificamente a idéia de perspectivas distintas para um mesmo acontecimento. As imagens projetadas possuem variadas funções. Algumas delas fazem alusão poética e ambientam o momento da narrativa, outras amplificam pequenos aspectos da cena (como um texto lido ou pequenas expressões de uma face) e outras parecem estar ali aleatoriamente ( mas não à revelia ) para que livres associações sejam feitas pelo público. Em alguns momentos a projeção joga com a noção de presença e de realidade.
Pois o que pode ser chamado de presente ou real quando estamos diante de uma obra onde as personagens contam o que já aconteceu, as atrizes representam personagens de maneira não representativa e onde o vídeo às vezes se mostra mais intenso e capaz de produzir emoção estética do que as atrizes à sua frente? Não se trata aqui de um vídeo que “roube a cena das atrizes” ou de atrizes que não são suficientemente fortes para se fazerem notar mais que o vídeo. Trata-se de uma estética cuja amplitude permite ao espectador escolher onde depositará seu foco maior de atenção, mas não há competição entre os elementos da cena.
Não sei até que ponto uma crítica de teatro inteiramente elogiosa pode ter validade para a discussão artística. Então dou espaço aqui a apenas dois pontos passíveis de problematização. O primeiro ponto diz respeito ao tempo de saturação ao qual fica exposto o espectador. Eu não desgosto da linguagem límpida, polida e quase neutra dada ao tom das narrações. No entanto, senti falta de momentos estratégicos para certo alívio de tanta constância de tons. Em dado momento, por exemplo, no dia em que assisti (14/05/09), ouviu-se uma sonoplastia de tiro seguida de um “Asta La Vista, Baby”. Achei aquilo perfeito! Genial ! Um momento tão carregado de tensão e tão sumariamente esvaziado dela só serviria de renovação das atenções, além de evidenciar com um drama seguido de paródia o que a contemporaneidade não se cansa de evidenciar: estamos diante de uma obra. Entretanto, só depois descobri... o “Asta La Vista” não era da peça. Foi um celular que tocou. Na hora errada. Mas não é que poderia ser ali a hora certa?
O segundo ponto diz respeito também a interferências. Cada atriz possuía um microfone pequeno e imperceptível acoplado ao corpo de maneira que, estando de frente para uma das platéias sua voz saía em caixas de som próximas ao outro extremo da sala. De repente, uma interferência, um problema técnico, um arranhado irritante e o texto seguiu sendo proferido como se nada estivesse acontecendo. Nesse instante específico a linguagem da obra não se tornou para mim crível. Pois, se estamos diante de atrizes que francamente contam uma história, se não há aí um esforço de personificação e identificação fixa entre personagem e atriz, se a luz e o som são operados em cena pelas próprias atrizes, se o que serve de assento a uma delas é um cubo contendo a maquete do próprio cenário, ou seja, se tudo é feito de acordo com uma estética onde os artifícios estão revelados, por tudo isso, me pergunto: Não poderia a atriz ter interrompido dignamente a apresentação, resolvido a falha técnica e depois seguido com toda a franqueza que a acompanhara até então?
A necessidade real de alívios estratégicos ao espectador e uma disposição maior para lidar sem embaraços com problemas técnicos, pontos de ressalva que existem, mas não comprometem A Filha do Teatro em seu todo. Uma obra que se propõe explorar limites do teatro sem cair em histrionismos vazios. Uma obra responsável e comedida feita por uma excelente equipe de profissionais que sabem o que estão investigando e literalmente sabem o que estão fazendo.


Obs: A peça esteve em cartaz de 16 de abril a 17 de maio de 2009 ( qui a dom às 19:30) na Galeria 2 do Caixa Cultural – Centro. Rio de Janeiro .

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A Filha do Teatro

Três personagens interpretadas por três atrizes em cena - cada qual sem seu papel definido -, um cenário que, ironicamente, traz à galeria de arte a estrutura da caixa cúbica - em grande ou pequena proporção - e uma direção que utiliza recursos multimídias e a metalinguagem para interrogar o espectador sobre os limites da encenação, desconstruindo o próprio fazer teatral.
A Filha do Teatro, em cartaz na Galeria de Arte da Caixa Cultural, conta a história de uma diretora de teatro que encontrou a atriz ideal para seu próximo trabalho, a qual, grávida, fazia sexo explícito na boate onde atuava. Ela dá a luz a uma menina, que terá sua guarda disputada pelas duas mulheres. O assassinato da diretora desencadeia uma série de monólogos, não muito preocupada com a ordem dos acontecimentos e determinada pela subjetividade de cada personagem. O enredo, aparentemente simples, mostra o quanto a visão do encenador é capaz de enaltecer o texto, tornando-o apenas a base para desenvolver questões que não se restringem à dramaturgia.
Pois nada está delimitado em A Filha do Teatro. O que importa para as atrizes Viviana Rocha, Priscila Amorim e Fernanda Maia não é atribuir particularidade a cada personagem, uma vez que eles nem estão definidos para cada uma das atrizes – colocando as principais figuras da história numa posição vulnerável -, mas participar do jogo de quando a encenação termina e inicia. Se num determinado momento, uma atriz tem sua fala interrompida por outra, a mesma se vira e se coloca na posição de público, abandona a interpretação e se torna espectadora da narração que acabara de contar, ao mesmo tempo que a terceira atriz, com uma câmera filmadora, exibe de forma assumidamente icônica toda a encenação num telão.
A cenografia de Doris Rollemberg, como não poderia ser diferente, vai ao encontro da proposta do diretor Antonio Guedes. Ao ser apresentada numa galeria, com o público distribuído em cada extremo do corredor, a cenografia traz para o espaço aberto elementos do palco italiano, o qual é claro em limitar a ação dos integrantes da encenação e evidenciar a ilusão que o teatro, de modo geral, propõe, mas que A Filha do Teatro pretende desconstruir. É claro que, devido ao texto, o palco italiano é um ambiente propício para a história ser contada, mas a intenção da cenógrafa não é simplesmente ambientar a dramaturgia: acima de tudo, é desmistificar o espaço teatral como estrutura rígida e delineadora – e as movimentações das atrizes em cena reafirmam ainda mais essa proposta. Não se pode ignorar, ainda, o impacto que aquelas estruturas podem causar no espectador, pois, se ao adentrar na sala aqueles elementos parecem desconexos, basta se assentar para a ideia visual se formar com clareza.
Assistir A Filha do Teatro é encarar um teatro que se assume como tal, a ponto do próprio roteiro no papel circular entre as mãos das atrizes ou ser exibido por projeção. Assim, o diretor Antonio Guedes consegue, com sua proposta, apresentar uma peça não apenas interessante, agradável de assistir, mas que incita o espectador até o último instante, quando o agradecimento do elenco ao público é através da exibição de vídeo. A sensação é desigual, e não resta outra escolha senão aplaudir um excelente trabalho.

Jefferson Ribeiro

domingo, 17 de maio de 2009

A Filha do Teatro

Não há dúvidas de que o espetáculo "A Filha do Teatro", do Teatro do Pequeno Gesto, tenta ser ousado. Porém, como não apresenta recursos suficientes para sustentar esta tentativa, criam um resultado pedante, sem razão de existência: uma exclusiva demonstração de poder intelectual.

Por exemplo, a cenografia assinada por Doris Rollenberg desconstrói o ambiente e forma duas platéias distintas postas frente a frente sem que haja nisso alguma intenção (no mínimo) interessante que justifique essa opção. Pelo contrário, conseguem transformar um espetáculo de apenas uma hora de duração numa eternidade.

Já os figurinos de Mauro Leite não expressam qualquer idiossincrasia das personagens - são apenas vestimentas comuns, qu se pode encontrar em qualquer loja de roupa popular. Parece que as atrizes não tiveram preocupação em vestir um figurino, simplesmente abriram seus armários pessoais, puseram uma peça confortável e subiram no palco da Caixa Cultural.

A iluminação de Binho Schaefer é feia. Nada ali foi criado - acenderam algumas luzes (algumas delas na própria platéia), vez ou outra eram trocadas de posição, enfim, não existem motivos para se declarar a autoria desta luz.

Os trabalhos de Paula Leal e Paula Bahiana, respectivamente de música e vídeo, são apenas firulas para enaltecer "a capacidade de ousadia da cena".

O texto de Luis Augusto Reis é o pior elemento do espetáculo. Não é texto de teatro, muito menos adaptável. É preferível que se leia em casa, ou melhor, é preferível que não se leia nunca, pois não há nenhuma novidade que valha a pena conferir.

A direção de Antonio Guedes é pobre. Não há ação, apenas atrizes andando de um lado para o outro contando uma história para públicos diferentes. Todas as opções que escolhe realçam sua pedância.

Dentre as interpretações de Fernanda Maia, Priscila Amorim e Viviana Rocha nenhuma se salva. São todas forçadas ao mesmo estilo cru de se dizer um texto da boca pra fora fazendo cara "de quem vai chorar a qualquer momento".

Muito provavelemente, o pior espetáculo do ano.

Maria Stuart

Em cartaz no teatro I do CCBB, está o espetáculo Maria Stuart, texto de Friederich Schiller, protagonizado por Julia Lemmertz, sob direção de Antonio Gilberto. Como se pode imaginar, a encenação é longa - pouco mais de três horas - e no entanto, em momento algum se torna cansativa, pelo contrário, a duração do espetáculo não é relevante, visto que muitos problemas técnicos são apresentados, apesar de não comprometerem a peça por completo.

A começar pela cenografia de Helio Eichbauer (que assina também a direção de arte). Pobre, é composta exclusivamente de um baú, um palanque e um trono, todos construídos em madeira, sem-qualquer beleza, porém muito funcionais, evitando o que é muito comum nas montagens dos grandes clássicos: a poluição visual. Caso houvesse maior cuidado, os elementos comporiam uma bela imagem da cena, mas parecem realmente inacabados. O mesmo se dá em sua direção de arte; falta um pouco de capricho no que diz respeito a estética geral da cena.

O figurino de Marcelo Pies é o grande erro do espetáculo. Além de não haver definição temporal (o que não seria tão grave assim), as vestes são constituidas de detalhes desnecessários e que pecam pelo excesso, como borrões de tinta ou efeitos gráficos, pretendendo dar um tom de “modernidade” a encenação, que nada tem de atual em sua proposta. Fora isso, estas vestes chamam tanto a atenção para si mesmas que destoam do conjunto.

Marcos Ribas de Faria preferiu optar pelo caminho mais fácil, sem-riscos. Sendo assim, sua trilha sonora é demasiadamente comum: músicas de época fazem pequenas interceções, quase imperceptíveis aos ouvidos da plateia. Não faria falta.

A iluminação de Tomás Ribas é muito irregular. No primeiro ato, a luz é feita praticamente em plano geral, enquanto no segundo, há angulações demais, ora criativas, ora pouco inspiradas, mas seu maior acerto se encontra na cena final – uma imagem belíssima das duas rainhas (Stuart e Elizabeth).

A direção de Antonio Gilberto é interessante, porém repetitiva quando se trata do enquadramento das cenas e posicionamento dos personagens. A ação é extremamente rígida, muito delimitada, por vezes, não natural. Contudo, determinadas imagens possuem um toque muito sofisticado do encenador.

O elenco é muito bem entrosado. Clemente Viscaino e Mario Borges estão bastante seguros nos papéis de Amias Paulet (carcereiro de Maria) e William Cecil (Grande-Tesoureiro), porém demonstram alguns vícios de interpretação, típicos de atores mais antigos. Já o papel de Mortimer, sobrinho de Amias Paulet, é de grande responsabilidade e infelizmente foi entregue nas mãos de um ator também cheio de vícios (Renato Linhares), mas desta vez não típicos de atores antigos e sim de atores inexperientes, que ditam incansavelmente a mesma melodia dos textos clássicos sem-sombra de verdade e com uma emoção explicitamente falsa. André Corrêa é um dos melhores atores em cena. Com um personagem cheio de sarcasmo (Robert Dudley, conde de Leicester), consegue brilhar em momentos ímpares. Amelia Bittencourt e Ednei Giovenazzi compõem uma excelente dupla de criados; são atores de altíssima qualidade. Vale ressaltar a interpretação emocionante de Ednei na cena em que Maria Stuart confessa seus pecados ao empregado. E por último, Julia Lemmertz e Clarice Niskier fazem duas rainhas brilhantes. A primeira, Stuart, é um monstro em cena, enquanto Elizabeth poderia ser um pouco mais imponente, mas isso provavelmente foi uma escolha pessoal da atriz que, por sinal, é muito talentosa. Quanto ao resto do elenco, não são suficientemente aproveitados para se poder julgar.

Enfim, Maria Stuart é um espetáculo de infiltrações corrompidas que, como dito anteriormente, não chegam a comprometer a encenação, mas deixam uma impressão negativa, um resquício de falta de comprometimento com a estética. O belíssimo texto de Schiller merecia uma montagem mais competente, mas, apesar dos pesares, vale o ingresso.

domingo, 10 de maio de 2009

Escoando pelo Ralo!

A onda de Tropa de Elite, 174 e Força Tarefa chegou ao SESC Copacabana com o espetáculo “Confronto – Sangrenta Madrugada Sangrenta”. Uma representação da violência urbana, que no cinema e na T.V. pode até empolgar o público, no teatro com as suas limitações cênicas não tem o mesmo efeito.
A peça foi escrita a seis mãos, Domingos de Oliveira, Luiz Eduardo Soares e Marcia Zanelatto, transpõem para o teatro os bastidores da cúpula da polícia carioca com enxurrada de palavrões. Situações de morte, traições, corrupção, sexo, drogas são mostradas sem aprofundamento. O texto em determinados momentos propõe uma entrega nas emoções vividas por esses seres que habitam esse Rio de Janeiro caótico e por vezes o texto é frio e distanciado. As falas do personagem Luís Felipe soam duras e artificiais na voz de Michel Bercovicth, um discurso politicamente correto, quase panfletário. O que é mais evidenciado na última cena, desnecessária, na qual o ex-secretário de segurança e atual locutor de rádio faz um discurso sobre a ética e sobre como a sociedade poderia se tornar . Algo que se adaptaria muito bem em uma boa montagem de Bretch, não soa natural.
A direção de Domingos de Oliveira em termos de marcação faz o que pode para solucionar o ingrato espaço do Teatro de Arena do Sesc. Porém na condução da encenação há erros primários como tiros não sincronizados, mortes onde os mortos continuam respirando, sangue que não existe, questões que se tivessem sido melhor trabalhadas fariam com que a platéia “comprasse” o que estava sendo contado, mas da forma que foi apresentada, acabou literalmente suicidando o próprio espetáculo. Tornando-se risível algo que estaria sendo mostrado para reflexão desses habitantes da cidade maravilhosa, purgatório da beleza e do caos.
O elenco é composto de 19 atores que de uma forma geral se comportam de forma bastante satisfatória, com destaque positivo para Camilo Bevilacqua, na pele do mau caráter chefe da polícia civil, e para Moises Bittencourt e Fernando Gomes como militares da inteligência. Um outro destaque é Paulo Giardini no papel do Governador do Rio de Janeiro, que impõe uma verve cômica ao espetáculo, através do cinismo da personagem, porém o sotaque paulista do excelente ator, estraga a credibilidade do mesmo. Alguém acredita que os cariocas votassem em um paulista para ser governador do estado? Seria difícil para o diretor propor uma neutralidade no sotaque do ator? Seria mais crível sem sombra de dúvidas.
Tratando-se de um teatro de arena a cenografia sempre é algo delicado, já que qualquer edificação pode significar a perda da visão por parte de algum ângulo da platéia. A solução dada foi de ter no chão de palco um desenho em forma de sangue escorrendo pelo ralo e quatro quadros pintados na parte superior das escadas, que pela localização não eram evidenciados. No mais, adereços como mesas e cadeiras serviam para compor todas cenas, não havendo diferenciação alguma se era a casa do Governador ou o presídio.
A luz de Russinho, supervisionada por Maneco Quinderé, é o ponto forte do espetáculo. Não só iluminando os atores, mas evidenciando o clima das cenas e servindo como solução para a deficiência do cenário, como na cena que Renata (Renata Paschoal) vai visitar Moisés (Marcello Pio) na prisão. Na qual um faixo de luz recorta o palco, dando a dimensão de uma grade separando as personagens.
É fato que o espetáculo não “decola” por causa dos problemas técnicos, pela falta de cuidado no acabamento, pela linguagem escolhida e pelo distanciamento que o personagem de Bercovitch tem em relação à questão da violência. A sensação que temos é que algo que poderia servir de reflexão para a população acaba escoando pelo ralo pintado no chão do palco.

Maria Stuart, de Schiller


“Maria Stuart” trata-se do encontro fictício entre a rainha católica da Escócia e sua prima Elisabeth, rainha protestante da Inglaterra. Tal encontro é promovido pelo clássico de Friedrich Schiller , do século XVIII.
A montagem de Antonio Gilberto segue à risca o texto traduzido por Manuel Bandeira, não fazendo questão de inová-lo ou enriquecê-lo através da encenação, que é muito pontuada, contando geralmente com um triângulo de atores em cena. Tal escolha torna o espetáculo de mais de três horas de duração cansativo para a platéia. Um breve intervalo entre um ato e outro é uma oportunidade mais que bem vinda para o espectador respirar antes de voltar para a continuação do pesado drama.
A iluminação de Tomás Ribas vacila em pouquíssimos momentos, mostrando-se segura e eficiente, e tendo seu ápice na cena final, quando cria uma atmosera tena e sombria, alcançando a perfeição. Já a sonoplastia não se destaca em momento algum, sendo até demasiadamente óbvia. Os figurinos são confusos e pouco atraentes, não se pode dizer a que época pertencem. As rainhas são vestidas com simplicidade excessiva. A cenografia de Helio Eichbauer, por sua vez, é perfeitamente eficiente, predominando a discrição da madeira, quebrada apenas pelo vermelho do chão. Sem excessos ou poluição visual, deixando que os holofotes fique sobre as duas grandes atrizes em cena.
A protagonista, Julia Lemmertz, consegue com maestria dar o peso e a força que exige Maria Stuart, com a ajuda de Amélia Bittencourt, a coadjuvante perfeita no papel de ama. Clarice Niskier interpreta uma rainha Elisabeth fria e rancorosa tão convincente que sua presença no palco chega a ser irritante. Os demais atores apresentam pouca personalidade na fala e nos gestos, não por sua culpa, mas pela escolha do encenador de seguir à risca o texto em português arcaico.
No geral, “Maria Stuart” é um bom espetáculo, que enriquece a cena teatral carioca. Vale a pena ser visto pelos seus muitos acertos em meio a alguns erros honestos.

Celebração da Indiferença - Crítica de "O Estrangeiro"

Adaptação do romance homônimo de Albert Camus, “O Estrangeiro” coloca em cena a história do julgamento de Meursault, um  personagem que apresenta comportamentos atípicos em seu cotidiano. Um homem que se deixa levar pelos incidentes que a vida lhe coloca, que não está profundamente ligado a nada. Cada momento de sua existência é um ato isolado em si mesmo.  Recebe a notícia da morte de sua mãe; não chora em seu enterro. No dia seguinte, vai à praia tomar banho de mar e ter um encontro com a mulher desejada. Vai ao cinema assistir comédia.  Em um dia de sol escaldante, comete um assassinato sem nenhum motivo. É preso e levado a julgamento. Mais do que pelo fato de ter matado alguém, Meursault é julgado pela forma como conduz a própria vida.

No monólogo dirigido por Vera Holtz, Guilherme Leme dá vida ao complexo e intrigante personagem. Certamente não é tarefa das mais fáceis interpretar a indiferença, a introspecção e o fato de estar alheio ao mundo. Dependendo do prisma pelo qual se analise o espetáculo, podemos dizer que a tarefa foi executada com êxito ou trata-se de uma grande perda de tempo. Tanto a direção quanto interpretação são altamente burocráticas, lineares, sem grandes diferenciações do início ao fim - excetuando-se o momento em que o personagem sai do grande quadrado a que estão limitadas todas as suas ações. A indiferença de Meursault impregnou toda a montagem. O problema é que essa indiferença acaba por criar uma barreira com o público, que não consegue em momento algum envolver-se com a trama.

 A encenação é pesada, repetitiva e sonolenta.  Tem-se a impressão de que tudo foi concebido (e a forma como Leme se posiciona no agradecimento reforça essa sensação) sem levar em conta que haveria uma plateia observando o espetáculo. Isso pode causar algum desconforto.

 O que deveria ser uma reflexão entre as atitudes esperadas e as executadas; entre o senso comum e o inusitado; entre o apego e o desapego acaba configurando-se como uma exibição do vazio. Ao invés de encarnar um homem que age de acordo com suas próprias convicções - independente delas serem socialmente aceitáveis ou não - o ator e a direção acabam nos oferecendo um homem e uma encenação sem convicção nenhuma, como se no palco estivessem tratando de uma mera banalidade.

As únicas relações que a peça estabelece são entre luz e cenário, que se contrapõem harmoniosamente. A cenografia de Aurora dos Campos “enquadra” literalmente a montagem, ao trabalhar com um grande quadrilátero recortado no chão, onde todas as movimentações ficam inscritas. Como objeto cênico, apenas uma cadeira giratória pouco explorada, mas de fundamental importância para ambientar a ação; num espaço comandado pelo vazio. A iluminação tem a assinatura de Maneco Quinderé, e opera num sistema de claro/escuro fazendo perceber-se bem o blackout e ofuscamento, e chamando atenção ao se valer de uma gigantesca luminária branca (também quadrada). Maneco consegue efeitos e movimentos altamente impactantes, mas em alguns momentos incômodos.

Com duração de sessenta minutos, “O Estrangeiro” consegue fazer com que de fato a plateia sinta a indiferença. Esse é o único sentimento que temos com relação à montagem. Ao final, todos aplaudem burocraticamente de pé, mesmo que tenham cochilado durante parte da apresentação.  Se o enterro da mãe não fez diferença na rotina de Meursault; assistir ou não a peça também em nada mudará nossa noite.

Sobre a opressão.


A partir do ensaio de 1846, “Sobre o Suicídio”, de Karl Marx, Luiz Fernando Lobo dirige a montagem da Cia. Ensaio Aberto, em cartaz no Espaço Sesc no mês de abril de 2009, em uma co-produção com a companhia belga “La Cerishe”.
Marx, em seu ensaio, cita os relatos de Jacques Peuchet, diretor dos arquivos de polícia de Paris durante o período da Restauração, e curiosamente, um monarquista. Mas já em Peuchet, o suicídio é pensado como sintoma de um meio social doente; seria um ato desesperado de fuga de uma estrutura social opressora, que transforma a existência individual em suplício. Marx usa então o teor de crítica social desses relatos para trabalhar seu próprio discurso. É digno de nota o recorte que Marx faz das memórias de Peuchet: na maioria dos casos, as vítimas são mulheres imoladas pelo patriarcalismo.
Este recorte se mantém na encenação de Luiz Fernando Lobo, que relata suicídios femininos em situações de suposta perda de virgindade antes do casamento, de marido que trata a mulher como propriedade, de abuso sexual familiar e decorrente gravidez indesejada, entre outras, sendo citado apenas um caso de suicídio masculino numa situação de desemprego.
Lobo mantém no texto encenado tanto a narrativa descritiva dos casos, característica do relato, bem como o teor político na abordagem do tema. O texto de Peuchet tem inspiração romântica, e é dado a arroubos sentimentais, o que Marx não suprime, nem Lobo; o diretor opta porém por contrapor ao texto proposições de encenação e atuação que distanciam o espectador de uma leitura emocional -o que é coerente com a história e orientação política da Cia.-, gerando um fato cênico específico.
A peça começa com uma projeção de vídeo, de Batman Zavareze e Fábio Ghivelder, em formato circular, no centro da arena do teatro. O vídeo introduz o assunto, e aponta para o caráter contemporâneo e planetário de alcance do tema. Para além destas imagens, a cena é predominantemente limpa, e se mantém desta forma durante a encenação. A iluminação de Jeff Dubois contribui para esta limpeza, criando formas geométricas no espaço cênico.
Entram em cena os atores, e todos – o próprio Lobo, Tuca Moraes, Fernanda Avelar e a atriz belga Françoise Berlanger – compartilham o texto, fragmentado-o, revezando-se na narração, esvaziando qualquer noção de personagem. Os quatro usam microfones de cabeça ou lapela, e surpreendentemente, somam a isto uma emissão de voz em volume bastante alto. Ainda, há no tom e no andamento das falas um proposital ritmo antinaturalista, comum a todos, apontando para uma opção da direção por enunciar o texto ao invés de interpretá-lo. De forma análoga à fala, os corpos não se mostram como individualidades: todos os atores se comportam de maneira parecida, objetiva, em deslocamentos retos, secos. Há, portanto, um pensamento coral, a proposição de um corpo e de uma voz comuns. Estes recursos cumprem a função de impedir a acomodação da platéia no conforto que poderia ser compartilhar daqueles casos suicidas sofrendo com eles.
Ao mesmo tempo, outro efeito é provocado ao longo da encenação: a grande massa sonora das palavras, emitida o tempo todo em volume alto demais e em ritmo constante, somada à postura de denúncia indignada por parte dos atores, acaba por os transformar cenicamente em porta-vozes hieráticos de um saber que deve ser imposto aos espectadores. Não há, em nenhum momento, qualquer dúvida por parte dos atores, eles estão blindados na segurança da certeza do que têm a ensinar. No seu conjunto de características físicas e no seu caráter de mensagem vinda de lugar privilegiado em relação àqueles que a recebem, a emissão resulta opaca, impermeável, agressiva. Curiosamente, a cena pensada como instrumento de crítica social utiliza na prática um registro discursivo comum à sociedade que ela quer criticar: a palavra opressora daquele que pensa saber mais do que aquele que ouve.
Estes procedimentos cênicos evidenciam o quê, de forma temática, norteia o espetáculo: a leitura única da causa de qualquer suicídio como sintoma social, e a consequente denúncia da necessidade de transformação da sociedade doente. E esta concepção é apresentada ao espectador como via única de possibilidade de entendimento da questão, e se mostra presente em todos os caminhos da encenação.
Os poucos objetos cênicos são em sua maioria bonecos. Uma boneca nua é apresentada imersa em um aquário, em referência aos suicídios por afogamento. Ao final, vários bonecos de pano são espalhados pelo espaço cênico, representando o grande número de suicídios que hoje acontecem por minuto no mundo. Novamente, um reforço à concepção do homem como uma marionete das convenções sociais, feito de forma literal, ilustrativa.
Quase ao final, há um longo vídeo de entrevistas sobre o aborto -mencionado em um dos casos no texto-, que permite ao espectador receber fisicamente de forma menos impositiva o que é veiculado. Mas ao interpretar que mulheres se sujeitem a fazer abortos exclusivamente por pressões sociais, a edição torna a tentar conduzir a recepção a uma única possibilidade de leitura da questão.
O tema do suicídio é vasto e ignora barreiras de civilização, cultura, sexo, faixa etária ou classe social. O suicida pode ser influenciado por inúmeros fatores: sociais, psicológicos, psiquiátricos, ambientais, familiares, culturais, genéticos. Ao tratar o assunto de forma redutora – sem levantar sequer as diferenças históricas dos relatos de Peuchet e Marx, e suas possíveis leituras sociais atuais -, a encenação acaba por não enfrentar de fato uma discussão política. O reconhecimento das diferenças é, por excelência o terreno do político. Nesta montagem, o político cede terreno ao ideológico.





Deus está em crise


Assumindo uma forma humana e frustrado com o fracasso de sua criação, Deus entra em depressão e resolve julgar a humanidade, é o fim dos tempos. Soa familiar?
Domingos Oliveira promete mostar em seu espetáculo “uma desrespeitosa e escandalosa comédia sobre Deus, algo nunca antes visto”, coisa que não chega a cumprir.
O cenário, composto por um balcão de madeira e um fundo representando o céu, é o mesmo durante toda a peça, cabendo à iuminação e à sonoplastia dar o tom de tensão ou humor de cada cena. Dever cumprido. Som e luz funcionam e harmonia, sem faltas ou exageros.
O texto é repleto de tiradas e situações que você provavelmente já ouviu antes, pois quando o assunto é comédia sobre Deus personificado prepare-se para ouvir “que eu te abençoe, meu filho” e coisas do gênero. Não que o texto de Domingos Oliveira seja ruim, só repete o que muitos já haviam dito antes dele. Difícil escapar do lugar comum nessa situação.
A direção do espetáculo é funcional, mas é prejudicada por um elenco muito numeroso (mais de cinquenta atores), distribuído em sua maioria nos coros. A presença de muitos atores ao mesmo tempo em cena pode se tornar confusa em determinados momentos e até mesmo cansativa.
O grande destaque é a interpretação de Matheus Souza, que dá vida ao deus problemático. Sua atuação é propositamente exagerada e quase passa dos limites com suas vozes e trejeitos, coisa que, felizmente, não faz.
No geral, “Apocalipse segundo Domingos Oliveira” é um espetáculo mediano que mostra através do humor a visão do ser humano sobre Deus, vida, amor e o Apocalipse. Entre erros e acertos, vale a pena ser visto.



Helena Cunha

sexta-feira, 8 de maio de 2009

SOBRE O SUICÍDIO

A prática de levar à cena textos não dramáticos há muito já deixou de ser uma experimentação para se tornar uma prática reconhecidamente bem-sucedida no teatro contemporâneo. Romances, contos, poemas, entrevistas, depoimentos, fragmentos, memórias, ficcionais ou não são encenados com mais ou menos sucesso, resultante sempre da capacidade dos artistas responsáveis pela transposição da obra escrita para o palco em conferir teatralidade às imagens sugeridas ou inspiradas pelo texto.
A encenação de “Sobre o Suicídio” pela Companhia Ensaio Aberto, dirigida por Luiz Fernando Lobo, parece ser um caso mal-sucedido desta relação entre texto e cena.
Sendo coerente com o trabalho que vem desenvolvendo há anos de um teatro eminentemente político, voltado às questões sociais, o grupo escolheu uma pouco conhecida obra produzida pelo jovem Karl Marx em 1846 a partir do relato de um funcionário do Departamento de Polícia de Paris, Jacques Peuchet, que narra quatro casos de suicídio (em sua maior parte de mulheres pertencentes á burguesia), para discutir as pressões sociais que levam um indivíduo a acabar com a própria vida. A aridez do ponto de partida não é, em si, um problema. O diretor Moacir Chaves há alguns anos partiu de um processo inquisitorial ocorrido no Brasil-Colônia para compor o belo espetáculo “Bugiaria”, provando que a fonte motivadora da criação artística pode estar onde menos se espera. A questão principal na encenação de Sobre o Suicídio, é que a direção não consegue extrair imagens teatralmente interessantes da obra de Marx, transformando o espetáculo numa narração monocórdia e entediante, que afasta o público do que parece ser o objetivo do grupo, ou seja, conscientizar o espectador sobre o poder que a organização social e os valores morais da coletividade podem exercer sobre o indivíduo, mesmo que para isso utilize situações referentes à sociedade do século XIX. Os motivos que levam os protagonistas dos casos apresentados na peça ao suicídio (perda de virgindade, adultério, demissão do emprego), podem até levar um indivíduo do século XXI a se matar, mas apenas como um caso isolado, nunca como um sintoma de pressão social. Muda a sociedade, mudam os costumes, mudam as mentalidades. De qualquer forma, Luiz Fernando Lobo parece acreditar tanto na força do texto, que dispensa o espetáculo daquele elemento que Roland Barthes definiu como “o teatro menos o texto”: a teatralidade.
Os casos apresentados no texto de Marx se sucedem no espetáculo, narrados pelos atores sempre em tom panfletário e gritado, como se já não fosse suficiente o uso de microfones de lapela por todos os integrantes do elenco (recurso, aliás, discutível, em se tratando de um espaço de pequenas dimensões como a arena do Sesc-Copacabana) e intercalados por repetitivas projeções, ora de imagens pouco reconhecíveis devido à rapidez com que são sobrepostas na projeção, ora de números representativos de índices estatísticos. A pouca movimentação, militarmente marcada, nada acrescenta como informação ou opinião sobre o que está sendo dito e o uso de alguns elementos cênicos, como um aquário e bonecos de pano, não vai além da mera ilustração.
Os atores, Fernanda Avellar, Tuca Moraes, o próprio Luiz Fernando Lobo e Françoise Berlanger, parecem estar lendo o texto em voz alta (e de fato lêem longos trechos, em alguns momentos) conferindo pouca organicidade a seus desempenhos e não conseguindo driblar as armadilhas propostas pela encenação, o que contribui para o não-envolvimento do público nas questões apresentadas pelo texto.
Ao confiar tanto no poder das palavras de Marx, a Cia. Ensaio Aberto parece não ter confiando tanto assim no poder do Teatro. Melhor ler o livro.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Brincando de ser don Juan

Como representar um mito? Como atualizá-lo?

E um mito do peso e força de Don Juan, já amplamente explorado pela dramaturgia, literatura e cinema? Como trazê-lo à tona colocando suas questões de infidelidade, hedonismo, paixão, luxúria com um olhar que busca entendê-lo dentro dessa múltipla faceta? Como trazê-lo sob um olhar de julgamento? Ou sob um prisma que pretende compreendê-lo dentro de sua porção mais humana? É certo que são várias as possibilidades de dar a ver esse mito/homem/personagem na cena. Na montagem dirigida por Thierry Trémouroux e Cia D., em cartaz na Sala Multiuso do SESC Copacabana, o que vemos é um recorte do que pode vir a ser o mito Don Juan em suas mais diversas possibilidades de ser, sugerindo um ser multifacetado, inquieto e transgressor em certa medida.

A encenação partiu basicamente do texto de Molière, fragmentando-o em várias camadas nas quais são inseridos os textos sobre o mesmo personagem de outros autores: Don Giovanni de José Saramago, que mostra um Don Juan mais irônico e debochado diante de suas conquistas amorosas; Don Juan narrado por si mesmo de Peter Handke, texto em prosa cujo personagem se mostra como uma espécie de potência da natureza que dói por ser o que é não podendo escapar do seu destino de sedução e luxúria; o filme O olho do diabo de Ingmar Bergman, trazendo o personagem dentro da dor de ser julgado e condenado por seus atos; assim como outras referências (notícias de jornal, por exemplo) que podemos ver em cena nas inserções que pontuam toda a releitura que atores e diretor propuseram nessa montagem de Don Juan, DJ simplesmente.

Através dessa escolha pela fragmentação de um texto previamente dado e já amplamente encenado, o Don Juan de Molière torna-se uma espécie de “hipertexto” no sentido de ser um guia/roteiro da história que vai ser contada e entrecortada pelas referências acima citadas. O que se vê é uma explosão dos vários textos, numa escritura cênica própria que se faz no acontecimento teatral do aqui e agora. São as múltiplas possibilidades da condição humana do mito Don Juan em jogo que essa cena pretende mostrar e discutir.

A presente encenação se caracteriza, penso, pela alegria de contar aquela história num clima de euforia. Assim que o público entra no teatro, o clima de festa se instala, tanto pela bela cenografia, que lembra um cabaré com luzes vermelhas que dão o tom da paixão, da noite e consequentemente da transgressão que o personagem título carrega consigo, assim como pela postura dos atores ao receber o espectador de forma descontraída, buscando uma intimidade para que todos se tornem, penso eu, cúmplices daquela história que vai ser contada. Os atores brincam entre si, dialogam com a plateia (inclusive orientando-a na sua acomodação no espaço cênico), fazem mágica, mímica, arrumam os seus figurinos e adereços cênicos sempre num tom jocoso e lúdico que permanecerá no clima inteiro da peça. Nesse movimento, podemos logo perceber o tipo de atuação que tomará corpo pelo discurso dos atores e direção. A infidelidade ao texto de Molière (proposta declaradamente pelo projeto), assim como o fato de a infidelidade do próprio personagem ser basicamente o tema, a infidelidade a uma noção de teatro em que se deve construir personagens bem acabados, onde o virtuosismo do ator é fator crucial, se dá por meio de uma atuação livre de fórmulas e formas para os personagens. O que importa é o jogo entre eles e platéia, é a brincadeira que deve ser estabelecida naquele determinado tempo e espaço, trazendo à tona a deliciosa idéia de que o lugar do teatro é o lugar do lúdico, da diversão.

A diversão de que falo não é o simples riso pelo riso, mas sim aquele riso que é construído no momento da encenação através do fato de que aqueles atores estão falando de algo que lhes toca que lhes é caro, porém de forma descontraída, sem uma seriedade severa com relação ao tema e ao peso de encenar um clássico. De forma extremamente brincada, muitas vezes debochada e irônica, o que está em questão é algo sério, mesmo que se mostre por meio de risos. É uma postura clara na presente encenação, é uma escolha e acredito que seja fiel àquele grupo de jovens atores. Como a brincadeira e a falta de “respeito” ao texto é levada ao extremo (até no sentido de os atores estarem o tempo inteiro colocando em questão o próprio processo de encenação, principalmente na relação ator e diretor) talvez as cenas em que se propõe uma tensão e densidade maior dos estados de alma daqueles atores em relação ao que discute o tema de Don Juan, tenham ficado superficiais, no sentido de não abarcar toda a dimensão moral e humana dos vários Don Juan de que partiram. Acredito que aprofundar essas questões em alguns momentos faria um contraponto interessante ao clima brincado da montagem, podendo aparecer as diversas nuances que compõe a relação homem e mulher. Uma espécie de mergulho mais profundo nas dores que o amor, a infidelidade, o prazer e a vingança trazem ao ser humano, por ser demasiado humano, ser Don Juan, ser Dona Elvira, ser Leporello, o criado que tem que se submeter às leis de um patrão para sobreviver, mesmo que reprovando todos seus atos.

Acredito que esse aprofundamento residiria na atuação basicamente. E que encontrar o lugar da dor daqueles personagens em confronto com o clima descontraído e leve da peça, não seja tarefa fácil para atores e direção. Seria preciso fazer quebras bruscas de estado físico e emocional, mostrando aí a beleza da condição humana naqueles sentimentos que oscilam e garantem um discurso que fala diretamente para a plateia e com a plateia. Esse caminho na atuação me parece melhor executado por Thierry, Carolina Ivancevic e Suzana Nascimento, que dão mais nuances aos personagens que “tomam para si”, assim como estabelecem uma relação menos tímida com o público.

É interessante perceber que há uma intenção de unidade nessa encenação dentro dos propósitos de que parte. Luz, cenário, figurinos, projeções, músicas buscam uma harmonia com a fragmentação da proposta cênica engendrada pela Cia. D e pela direção. É nítida essa procura dentro dessa visão de jogo, que é exacerbada pelo fato de que o chão é revestido por um tapete que lembra um tabuleiro de xadrez. Embora o uso desses dispositivos em vários momentos não se concretize efetivamente, podemos captar a sugestão e isso me parece um ponto positivo.

Mas o mérito dessa montagem, a meu ver, é o risco que correm ao fragmentar o texto,assim como o risco da exposição a que se submetem dentro do registro de atuação escolhido que procura um diálogo com a platéia, deixando-a à vontade dentro daquele jogo caótico de cenas entrecortadas de sons e profusão de imagens.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Ratatá - Que Pândega!!!

Ratatá pode ser uma onomatopéia da sinfonia urbana, tão intima de nós cariocas, produzida pelas metralhadoras espalhadas nas mãos de nossos traficantes e policiais. Ratatá, uma gíria usada pelos usuários de cocaína que indica o ato de cheirá-la, uma expressão empregada constantemente para fazer piadas entre os adeptos de tal prática. Há os que convidam seus parceiros a dar um tiro, e mais uma vez estamos falando da ingestão de cocaína. O “cano-nariz”, que projeta a droga para dentro, o cano da arma que projeta a bala para fora. A imagem do consumo da droga está intrinsecamente ligada à violência e tem por si só um tom patético. O próprio efeito da droga é violento e rápido como um tiro.
A cocaína é uma das personagens da peça, Ratatá, escrita por Daniel Tendler, e é o seu universo que dá o tom e a cor do espetáculo, dirigido por Ivan Fernandes. O ritmo é frenético, com violência e humor galopantes.
O espaço escolhido para a montagem, é uma boate GLS, muito conhecida da cena noturna e teatral do Rio de Janeiro, o Galeria, que promove após a peça uma clássica festa, que faz parte de seu “cardápio” há mais de seis anos, chamada Estrelas Mudam de Lugar, em que um ator ou atriz conhecida troca de função e se aventura como DJ ou como bartender. Portanto o ambiente em si é favorável à proliferação da droga citada e a presença de seus cultuadores.
A peça trata da história de um escritor (Alexandre Varella) que promove uma festa em seu apartamento, regada largamente a bebidas e cocaína, para um crítico (Zé Guilherme Guimarães) conceituadissimo que pode alavancar a sua carreira definitivamente. Para ascender ao patamar profissional que tanto deseja, o protagonista tem de favorecer sexualmente o seu convidado especial. Neste contexto encontramos a “fauna” que cerca o personagem principal, a atriz “sexólatra” e desconhecida, Tatiana Muniz, o drogado e alienado, “amigo dos amigos”, Alexandre Bordallo, e o traficante, Silvio Siqueira.Os personagens são caricaturas de figuras facilmente encontradas na noite e no meio artístico da urbes.
A direção é fortemente marcada pela influência do diretor de cinema Tarantino. Parece uma tentativa de um Pulp Fiction teatral. A violência levada ao seu nível mais bárbaro, entranhada na relação com a cocaína, entre os personagens e a sua própria vida e nas suas inter relações, de uma forma muito cotidiana e banalizada. E o uso da música se articulando com a cena de forma irônica.
Mas a execução do espetáculo é absolutamente superficial, pois apesar da aparência contemporânea, ficamos diante do velho teatro realista e dramático que tão bem conhecemos, com o diferencial que não temos uma exploração mais profunda dos conflitos levantados pelos personagens. Não há riscos, não há nada de novo, ou experimental. As soluções parecem ser fáceis e clichês. A sensação é que tanto o diretor como os atores, com exceção de Alexandre Varella, não estão envolvidos realmente com a peça. São imagens de fácil consumo, fazendo piada da situação caótica em que seus personagens estão inseridos. Ao espectador cabe assistir passivamente o espetáculo, pois todas as respostas estão dadas, nada há para pensar, o entendimento é servido como uma pizza. Apenas entretenimento, com questões com as quais convivemos em nosso cotidiano e que causam tantos estragos sociais. Há sim, um posicionamento político, (que eu caracterizo de cínico), mesmo que os envolvidos não tenham consciência que a todo momento se posicionem politicamente, que hoje é absolutamente comum no teatro carioca: as coisas são assim, então vamos rir delas, a gente não vai mudar nada mesmo.