quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Efeito Ditadura

É com profundo pesar que inicio esta crítica. Profundo pesar principalmente em função do grandioso Vianinha e do histórico Opinião, um espetáculo que reuniu a força e a coragem de alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros e que realizou um movimento de vanguarda frente “ao amor e a flor” da bossa nova e de resistência à ditadura. O espetáculo que lançou Maria Bethânia.
Infelizmente no programa de “Outra Opinião” a peça referida acima é citada pelo grupo Nós do Morro como inspiração deste novo “desespetáculo”.
O pensamento que me vem à cabeça ao assistir tal empreitada, é que o efeito ditadura se consolidou da forma mais maléfica que poderia dentro da nossa sociedade, criando uma classe teatral medíocre. Realmente continuamos sem história, pois realizar um espetáculo tão raso citando uma obra tão magistral dos anos 60, significa o que o Caetano vociferou em pleno festival da canção: “Vocês não estão entendendo nada. Vocês não estão entendendo nada...” No Rio de Janeiro o teatro se tornou sinônimo de Sai de Baixo, o cinismo das platéias e das peças que só se interessam em fazer piada com as maiores mazelas de nossa civilização fez com que o teatro carioca perdesse de fato toda sua força política.
A peça começa com a canção chave do Opinião, de 64, com todos os atores reunidos no centro do palco, no final da música uma senhora de seus quase 70 anos faz uma relato de sua vida, forçando uma comicidade através de seu português ruim, a típica linguagem de moradores de favela, e de palavrões de baixíssimo calão, o humor sobre a ignorância que tanto tem agradado as classes mais abastadas do Rio de Janeiro, que a pouco tempo fizeram o sucesso de Tati Quebra Barraco nas boates dos burguesinhos da zona sul.
O Opinião trouxe do morro o que havia de melhor dele, trouxe Zé Kéti, trouxe verdadeiros poetas do cotidiano das comunidades excluídas, para exaltá-las. Mas o Nós do Morro infelizmente faz o jogo contrário ao trazer o pior, como por exemplo, o Baile Funk, em que uma das músicas repetidas tinha a o seguinte refrão: “Ih! senhor não tem banheiro pra fazer nem xixi, nem coco”. O que falar de uma peça dessa? Que ainda tem o descaramento de dizer em seu programa: “Sem levantar bandeiras ou definir regras e exceções, este espetáculo abre as cortinas para a reflexão, expõe sob os refletores a multiplicidade do ser, transpõe para o palco a voz de todos nós que ainda vivemos sob a mira de tantas ditaduras.” Quanta pretensão! Absolutamente nada disso foi realizado. O que vemos é um espetáculo amarrado à clichês do morro, do favelado que não mostra o valor do morro.
Outra cena de enlouquecer “um ser pensante” é quando a montagem se refere ao amor, num jogo em que os casais, para ilustrar o fato do ser amado ser a prova de qualquer noção de higiene, colocam a mão em partes intimas e fedorentas ou sujas, como o nariz, o anus e etc e dá para o outro lamber, cheirar, chupar e etc. Isso é pelo menos regressão a fase oral, francamente! Dizer que um espetáculo desses se inspirou em Vianinha é um ultraje. São ações vazias, para provocar riso fácil.
Salvam-se as músicas do espetáculo, tirando as do baile funk.
No programa “culpam” Paulo Giannini e Kadu Garcia pela escrita do desespetáculo, e a dramaturgia foi construída a partir das histórias dos próprios atores e de composições musicais de Lirinha, Zé Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Pedro Luis, Marisa Monte, Céu e outros.
Um único momento de coragem real da peça foi uma cena que abordava o abuso sexual de uma menina pelo pai, mas logo a questão é esvaziada pela cena seguinte, em que o pai procura uma prostituta e ela fica gemendo gritando papai, mais uma vez voltamos ao riso para abafar o pensamento e o contrangimento.
A última do programa: “Portanto pedimos licença a João do Vale, Zé Kéti, Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Porto e Augusto Boal para darmos a nossa Outra Opinião”.
LICENÇA NEGADA!!!! Afinal isso não tem nada de Opinião.

Até que Enfim Hamlet

“Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.
E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga as idéias que deveriam permanecer divinas; pois longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.”
Antonin Artaud
in, O teatro e seu duplo, pg. 03.

Somente um homem absolutamente impregnado de seu próprio tempo, pode ultrapassá-lo. Assim foi Shakespeare, eternizado por uma obra que vence séculos e que provavelmente vencerá milênios, pois foi um autor que conseguiu tocar numa matéria humana tão primordial que perpassa existências distintas em tempos distintos.
Hamlet é acima de tudo uma peça que avança brutalmente sobre a condição existencial do homem, uma obra que não se fecha em si mesma, e que faz de seu personagem um mito. Afinal, essa natureza questionadora em relação ao sentido de nossa própria vida e morte e sobre os atos que nos circundam e que nos move a agir, experienciamos em nossa vida, em nosso cotidiano e faz parte da condição do homem contemporâneo.
Artaud construiu um conceito de crueldade como “uma ação levada ao extremo...rigor, aplicação e decisão implacáveis”(ibidem:pg118), onde a cena era o espaço de atuação. Portanto acredito que o estudo do texto no exercício da encenação realizado pela companhia dos Atores em Hamlet.com entra em consonância com a proposta teatral de Antonin Artaud, de um teatro que se realiza através da encenação. No momento em que se propuseram realizar uma experimentação da obra, uma “autópsia” em suas próprias palavras eles alcançaram uma qualidade simbólica que corresponde a riqueza do seu objeto de estudo, que abre os caminhos para a vastidão dos infinitos significados e implicações do texto.
Sem abrir mão da contemporaneidade desde do título, afinal Ensaio.Hamlet é uma forma que se assemelha aos endereços da internet, a ferramenta mais avançada e utilizada de comunicação globalizada, uma tecnologia que mudou a maneira do homem existir. A encenação não se estabiliza num só momento histórico, fazendo esboços em tempos e em lugares diferentes. Na cena em que se encadeia a morte de Ofélia, a rainha canta um Blues que nos leva ás margens do Mississipi, e a jovem entra espalhando baldes pelo espaço para as goteiras, suas lágrimas infindáveis pela morte do pai e pela tragédia vivida com Hamlet, logo em seguida ela se afoga depois de despejar em si os litros de um garrafão de água, um pequeno exemplo da espetacular qualidade e quantidade de símbolos que a companhia consegue desenvolver através de ações intensas, como quando Laertes e Hamlet brigam encima do túmulo de Ofélia e esta é um pedaço de carne cru passado a ferro pelos dois. O ferro e carne têm um significado que extrapola conceitos factuais e lança poética e metafisicamente os espectadores numa sensibilização que não conhece padrões pré estabelecidos.
Ao assistir a encenação de Ensaio.Hamlet vejo a mais profunda cumplicidade entre texto e encenação, infinitamente maior que qualquer montagem que se diga fiel ao texto, pois todas as inserções e colagens propostas pela companhia só aumentaram a força poética e a multiplicidade de possibilidades que a obra abrange, pois ela é política, psicológica, histórica, drama familiar, tudo ao mesmo tempo.
Assim como é um texto para ser relido diversas vezes ao longo da vida, esta montagem é deliciosa de se ver e rever, pois não é consumível na sua totalidade, assim como o texto de Shakespeare ela deixa lacunas e que a cada novo testemunho terá um outro preenchimento por parte do espectador. Acredito que ao realizá-la repetidamente a própria experimentação se enriquece ainda mais, como um vinho que amadurece a cada ano.
Definitivamente toda a magia do universo de Hamlet está presente na montagem da Cia dos Atores. E o melhor, os realizadores de tão inteligente encenação, colocam o espectador num espaço de ser pensante, criador e articulador da história e dos símbolos propostos por eles em sua decodificação das suas experiências e ações, fato raríssimo no teatro carioca, que vêem colocando o espectador cada vez mais no lugar de macaco de auditório.

A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto

A descrição da cena inicial de A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto não trará à mente do leitor o potencial de impacto que a abertura do novo espetáculo infantil da Cia. de Teatro Artesanal pode originar no espctador. Mas para a plateia, dividida entre crianças e adultos, presente no Teatro do Jockey ficou evidente a potencialização estética que uma combinação coerente e harmônica entre os recursos teatrais e a música é capaz de resultar. A pantomima dos atores, a luz que colore o espaço e a melodia de Prokofielv presentes no prólogo da narrativa marcam o estilo predominante na encenação e torna-se o principal atrativo e diferencial que o espetáculo tem a oferecer.

Com um caráter gótico (segundos os diretores Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves, como uma referência aos filmes de Tim Burton), a peça narra a história de um Príncipe, que, ao nascer com rosto num reino onde todos são desprovidos do mesmo, é aprisionado na torre do castelo por seus pais. Lá ele passa sua infância, tendo contato apenas com sua ama e contando com visitas esporádicas de seus pais.

O diálogo sede lugar para a narração em off e trabalho de corpo dos atores, o que sempre é uma troca delicada. Em A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto, porém, o negligenciamento do texto não se torna uma ressalva; a Companhia, aliás, ao optar por tal decisão, valoriza o visual e a diversidade de encenação ao utilizar bonecos, manipulado pelos próprios atores, e máscaras – que, de cor branca, contrapõe com o preto dos objetos e figurinos da peça e, por fim e não à toa, tende a ser o elemento mais destoante em meio à escuridão do ambiente.

A dramaturgia é que acaba se enfraquecendo à medida que o espetáculo avança. Enquanto que o uso de bonecos e o impacto inicial que a plasticidade da peça gera no espectador compõem um primeiro ato rico e atraente, o crescimento do Príncipe, realizado de maneira questionável por trazer o rosto do ator em cena e romper com o negro absoluto que ocultava a face dos atores, delimita não somente a mudança de ato, mas também quebra o ritmo que a narrativa possuía até o momento. Ainda que reserve espaços para pequenas surpresas, a prolixidade e o desfecho vago recebem, inevitavelmente, um peso no saldo geral do texto.
Mas A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto é imagético. As imagens que permanecem na lembrança ao fim do espetáculo são maiores que os deslizes do texto - ou é possível se esquecer da cena do Príncipe, ainda criança, brincando com uma borboleta? Se a fala desaparece, a imagem precisa ganhar forma. E assim o espetáculo se sustenta.
Jefferson Ribeiro

A MULHER QUE MATOU OS PEIXES...E OUTROS BICHOS, comemoração e memoração.




A MULHER QUE MATOU OS PEIXES...E OUTROS BICHOS, comemoração e memoração.
por Alessandra Colasanti
julho de 2009

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança nem bicho sofrer.”
Clarice Lispector


“A mulher que matou os peixes... e outros bichos”, em cartaz no teatro Oi Futuro, no Rio de Janeiro, é uma peça infantil baseada na obra de Clarice Lispector, que tem o livro “A mulher que matou os peixes” como ponto de partida. Mas não é só isso. A respeito dos outros bichos mencionados no título sugiro duas leituras imediatas. A primeira literal: além da mulher, que é a própria autora, e dos peixes, a peça traz à cena diferentes tipos de animais como cachorros, galinhas, gatos e macacos. E a segunda metafórica: outros bichos significando todo o resto, ou seja, tudo o que não é “A mulher que matou os peixes”, tudo o que foi agregado ao livro, tudo o que estava fora dele e foi convidado a entrar. Este é um trabalho de entroncamentos.

O espetáculo estruturou-se como processo colaborativo a partir de uma iniciativa da atriz Mariana Lima, em cena ao seu lado os atores e bailarinos Renato Linhares, e Luciana Froés. Cristina Moura é a diretora. Isabel Muniz assina a dramaturgia e adaptação, Paola Barreto os vídeos, Enrique Diaz a iluminação, Lucas Marcier e Fabiano Krieger a direção musical, com colaboração de Felipe Rocha, Mari Stockler a direção de arte e cenografia, Marcelo Olinto os figurinos. E por fim, Mariana Lima, Renato Linhares, Luciana Fróes, Cristina Moura e Daniela Fortes, também assistente de direção, assinam juntos a criação do espetáculo, firmando e confirmando o processo de criação coletiva.

Um trabalho de entroncamentos baseado em originais de Clarice Lispector. A partir de sua literatura funda-se um edifício criativo atravessado, percorrido, cruzado por inúmeras referências, onde diferentes olhares se encontram e se fundem. Potencializando, transformando, diluindo, multiplicando, e redimensionando as partes e o ponto de partida. Um palimpsesto onde nada se apaga. Onde a soma trama e edifica teias e camadas de significados. Trata-se de um trabalho de adição, mais do que de transposição. É possível distinguir o eco de diferentes obras da autora, além do livro homônimo, mas há mais do que isso. À voz da autora somam-se o campo criativo, o imaginário e o vocabulário estético dos artistas envolvidos. Um bicho de infinitas cabeças, caudas, filhos, filhotes e também sombras.

Os atores materializam o universo de brincadeiras infantis, onde ações físicas e diálogos misturam imagens e falas surgidas em sala de ensaio a fragmentos de textos e idéias presentes na obra original. O cenário embora neutro, não descritivo, faz lembrar um quarto de criança. Diversos objetos e instrumentos coloridos dispostos sobre o palco revestido de branco remetem a uma mistura de baú de brinquedos, aconchego doméstico e mundo dos sonhos. Almofadas multicoloridas à beira do palco são destinadas aos mais pequeninos, que ficam assim bem próximos da cena, praticamente dentro dela. Os vídeos e iluminação conferem agilidade e lirismo à cena, bem como os números musicais executados pelos próprios atores, que compõem uma banda de rock mirim, com baixo, guitarra e mini-bateria. O figurino em sua heterogeneidade e cores fortes lembra as partes móveis de um brinquedo plástico de armar. A interpretação é coloquial, caseira, casual, convidativa. Os atores representam a criança que existe dentro de todos nós, longe de qualquer espécie de modelo caricatural de comportamento infantil e, ao mesmo tempo, despudoradamente infantis. Adultos brincando de criança, no melhor sentido da palavra brincar. Por sua vez, as palavras caseiro, convidativo, quarto, baú e dentro falam muito aqui. Não à toa a escritora aparece em cena escrevendo. Escrever é um ato íntimo. É o baú de brinquedos do adulto, onde bonecas, carrinhos, e massas de modelar são substituídos por sintagmas, adjetivos, verbos, substantivos e outras aflições. A linguagem é a brincadeira.

A não linearidade da peça se justifica conceitualmente, e extrapola a linguagem contemporânea enquanto recurso estilístico. A mecânica da mente é por excelência fragmentada. A causalidade não passa de uma construção, de uma artificialidade. A estrutura em estilhaços da peça reflete e elabora simbolicamente o ambiente íntimo, portanto, do imaginário, do inconsciente e da memória. Assim, displicentemente a peça abre uma porta, ergue uma ponte, nos religa a essa instância velha conhecida de todos nós, o passado. Esse lugar de projeção das primeiras descobertas. Descobrir é ampliar o mistério. Quanto mais se sabe mais se deixa de saber. O processo de formação do sujeito é um laboratório de encantamentos, paradoxos e angústias. Formar não é adquirir conhecimento, não é um ato de preenchimento, é um ato de alargamento, e alargar dói. Não é uma caixinha onde se colocam coisas até não caber mais. Os limites desse percurso ampliam-se a cada descoberta. O que se ganha é também o que se perde. Cada aquisição vem acompanhada de um buraco, e nunca se chega lá. Aprender é crescer, e crescer é morrer, e a criança também morre a cada instante, e ela sabe disso. Portanto, o tema da morte presente no título e em toda a peça mostra-se pertinente, e funciona, de um modo bastante particular, como enredo dramático.

A estrutura narrativa da peça se divide entre manifestações no tempo presente, com ações físicas, brincadeiras e diálogos, e conteúdos narrativos referentes ao passado, onde os atores contam histórias do que já não é, do que já foi, especialmente de animais de estimação que se foram. A ecenação trabalha a um só tempo o discurso visual, o dialogal e a prosa, com pinceladas de música ao vivo.

A narratividade traz consigo a noção de memória. A memória também não é o lugar do acúmulo. A memória é o lugar da perda. Na luta contra esse dínamo devastador criamos e recriamos nossas próprias histórias e lembranças. A memória é o nosso quartinho escuro de auto-ficção. Memória é morte, é apagamento do ser, de seu percurso, e é vida, porque viver é desaparecer aos poucos. É assim, o lugar da solidão, não da solidez. Por isso a gente escreve, por isso a gente lê, faz teatro e vê cinema, enche a cara e se apropria de histórias alheias, para tentar preencher esse oco sem fundo e sem parede, para tentar gotejar qualquer coisa no vazio, para ver se faz barulho, para ver se faz sentido. A angústia diante da existência surge como tema central na obra de Clarice, abordada, geralmente, a partir de fatos comezinhos, ordinários que abruptamente se transfiguram em fenômenos metafísicos . Como o gigantismo epifânico de um ovo, de uma barata ou de um passeio de bonde. Esse sentimento “da dor do mundo” está presente o tempo todo no espetáculo, equilibrando-se entre a beleza e o abismo dos pequenos fatos da vida.

Para além de suas camadas mais profundas, a peça é divertida e brincalhona. O caráter festivo da encenação parece celebrar esse processo de perda permanente que é a vida. Comemoração e memoração. E no meio dessa festa com cheiro de jujuba e balão explode o vocabulário estético, a linguagem.

Assim como os textos de Clarice, a peça está isenta de qualquer traço moralizante. A própria linguagem atua como antídoto neste caso. Num contexto hiper fragmentado a causalidade que poderia fundamentar um fecho moral, porque persuasiva por natureza, não acontece.

As percepções do espetáculo se sucedem como em um painel multidimencional, onde os elementos podem ser organizados de acordo com a experiência pessoal de cada espectador. Esse caráter de obra-aberta é multiplicador, pluralizante. Abre sentidos ao invés de fechá-los. Porém, este mesmo aspecto que representa o maior mérito do trabalho, talvez seja fonte também de sua fragilidade. A peça se inicia de forma mais irregular, porque mais abrangente, para aos poucos afirmar seu desejo.Porque uma obra é um ser desejante, ela fala, ela aponta, ela quer. E no momento que um propósito se afirma é como se do caos e dos cacos, e junto com eles, sem deixa-los para trás, subitamente a peça alçasse vôo, se intensificasse, como se ilhas de sentido se avultassem do tablado. É curioso notar como, nos trechos onde a narrativa linear se faz ligeiramente mais presente, onde se distinguem mais claramente pequenas historietas, o espetáculo ganha densidade cênica e dramática. Especialmente nas passagens onde figuram a macaquinha Lisette e a Galinha, por exemplo. Então o que coloco aqui é mesmo uma questão, não uma valoração. É uma reflexão sobre o próprio mecanismo intrínseco à fragmentação. Como lidar com a coerência em meio a pulverização? Que espécie de ordenamento essencial reclama? Tento aqui supor esse sentido de certo para além do lógico causal. Notadamente a reta final da peça constrói um percurso de redenção para a própria peça, como se os elementos do caleidoscópio que estiveram um tanto mais aleatórios, de repente encontrassem um rumo, um prumo. É uma sensação. E talvez não seja mesmo a narrativa responsável por essa iluminação. É como se o foco da câmera abrisse e fechasse ao longo da encenação, mas não porque o operador assim o desejou, mas por uma disfunção do diafragma. Perguntaria finalmente se não existe um certo excesso pelos cantos, como se os adultos tivessem tido dificuldade de deixar de fora alguns brinquedos tão queridos.

Falta dizer o quanto o conjunto é inspirador para crianças e adultos; o quanto provoca e fertiliza as inteligências; o quanto é tocante em seu misto doce e acre-doce; o quanto é louvável a conjunção limítrofe de teatro infantil e pesquisa de linguagem contemporânea. Essa pesquisa embora esteja presente, não ocupa o primeiro plano. Os procedimentos estão lá, os deslocamentos, repetições, ausências, justaposições, inversões, convergência de linguagens, intertexto, colagem, improviso, ecos da dança contemporânea, mídia eletrônica, interfaces, interatividade. Mas os procedimentos funcionam como veículo. Constituem um discurso em si, mas que não se esgota em si. A peça vai além. A peça parece feita de pequenos bibelôs gigantes que se entremeiam e se complementam e se atravessam e se extrapolam e se desentendem e se conciliam numa espécie de ciranda dodecafônica, como um jogo de regras móveis, de língua inventada que se desmancha no ar e amanhã já se esqueceu, e que fica para sempre, mas não se sabe onde. Como o endereço secreto daquela casa encantada, engraçada, que não tinha teto não tinha nada, mas onde é bom ficar, porque pode sair e pode entrar, e tem chão, tem parede, e tem teto, e de repente não tem mais, e tem tapete voador que sopra e surfa e insufla para dentro e para fora dos livros, não só os de Clarice, mas todos os livros de todos os tempos, inclusive os que sumiram, inclusive os que nunca serão escritos, mas que estarão para sempre guardados na memória do mundo. (Alessandra Colasanti)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Um ensaio sobre algumas das críticas de Hamlet e as Razões da Crítica .

Nota: Os objetos aqui trabalhados são críticas de autoria de Jefferson Lessa, Bárbara Heliodora, Ana Kutner e Tânia Brandão para a peça Hamlet, publicadas no “O Globo”. Além desses objetos, faço uso do livro “Razões da Crítica” de Luiz Camilo Osório.

Nota 2: HAMLET de William Shakespeare. Tradução: Aderbal Freire-Filho com Barbara Harrington e Wagner Moura. Direção:Aderbal Freire-Filho. Em cartaz de 13 de março a 31 de maio de 2009 no Oi Casa Grande, Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon. Sextas e sábados, às 20h30. Domingos, às 19h.
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Penso que todo autor de crítica pode e deve munir-se de certa dose de irresponsabilidade no sentido de não temer abalar o senso comum. Mas é preciso que a liberdade oriunda dessa irresponsabilidade (que é legítima) não se confunda com uma coisa qualquer, com uma falta de parâmetros, de critérios. Não defendo aqui um modo padronizado, único, de redação. Mas há que se buscar pistas e caminhos que colaborem para a atribuição de credulidade ao posicionamento crítico.
Em seu livro As Razões da crítica, Luiz Camilo Osório afirma:“Há que se julgar justamente porque não temos mais nenhuma certeza a priori sobre como uma obra cria sentido”. Ao dizê-lo, faz menção a um ajuizamento autoral, mas não autoritário que, dividido com o público, contribuiria para a criação de um espaço comum onde a partir do dissenso poder-se-ia tanger algumas considerações importantes em torno do fenômeno artístico num tempo de múltiplas incertezas acerca de sua natureza. É sempre arriscado atribuir função às coisas no campo da arte. Mas uma provável função da crítica seria então buscar uma dinâmica de esclarecimento por destrinchamento e exploração do fenômeno. Nesse sentido, não pode haver maior desserviço do que uma crítica teatral que feche suas conclusões em “bom” ou “ruim”. O que estamos explorando, esclarecendo ou destrinchando ao chamar algo de bom ou ruim?
Assim, começo agora de fato meu ensaio sobre críticas a partir da redação de Jefferson Lessa. O que significa ele dizer, por exemplo, que “A luz de Maneco Quinderé é bonita e luxuosa”? Ou dizer que o cenário de Fernando Mello e Rostand Albuquerque é “moderno, bonito e funcional”? Em que medida, de fato, isso contempla o trabalho dos artistas ou serve de algum indicativo ao público? A redação de Jéferson Lessa, apesar de ter o desbunde necessário e louvável para um crítico teatral, segue parâmetros de ajuizamento ultrapassados.
Primeiro, por uma discussão que se encerra em adjetivos. Segundo, pela crença na existência de uma essência das personagens. Personagens não são almas que vagam por aí à procura de atores que as corporifiquem. E essa é uma discussão datada, suficientemente abalada e encerrada no século passado. Dizer que “se trai a essência” de um personagem pode significar ignorar o gesto autoral presente no trabalho do ator, da direção e dos demais ramos da produção teatral. Acreditar numa única essência, estável, de personagens é relegar ao ator a função de executor e ao diretor a involução para a condição de encenador, que somente materializaria as idéias de um texto.
Bárbara Heliodora também se mostra adjetivacional e laudatória. Mas, vai mais além em seu desserviço por sua característica marcantemente normativa. Ela incorre em colocações pueris como “É boa a luz de Maneco Quinderé e interessante a música de Rodrigo Amarante”. E é evidente que, em se tratando de Shakespeare, há a atribuição de valor canônico ao texto. Seus argumentos fazem menção sempre a como o texto e os personagens são maiores do que aquilo que se fez deles em cena. E isso é feito em total desconsideração com a intenção e os recursos estilísticos autorais dos artistas. Um exemplo, o figurino. “Os figurinos de Marcelo Pies são fraquíssimos, os melhores sendo os que ficam em trajes simples e contemporâneos.”
O que importa ao desenvolvimento do pensamento em torno da arte não é se os figurinos são fracos, mas como e porque são fracos ou fortes. Na condição de crítico faz parte saber que ele foi feito a partir de camisas sociais brancas masculinas e contemporâneas que, em resultado mosaico, sugerem algo entre um vestido de noiva e uma camisa de força. A partir de tais especificidades eu posso julgar se essa arte traz em si ou não alguma potência.
Ana Kutner já parece ter noção e propriedade para falar de caminhos da cena enquanto jogo. “ É a deliciosa proposta de fazer teatro no momento em que é feito (...) Estar em cena é uma necessidade de interferir na história que todos, atores e platéia, vêem.” Esse caráter de intervenção, naturalmente, será pouco compreendido por quem quer que ponha a literatura à frente da inteireza material e presente da cena. Intervir é afirmar-se, é existir. A intervenção é valorada positivamente por Ana Kutner também quando ela diz que “Gilbray Coutinho como Polônio aproveita todos os estímulos que a cena lhe sugere, nos apresentando com um novo colorido para um polônio bem humorado e inteligente.”
Contudo ao tentar no último parágrafo dar conta de todos os outros setores da peça ela incorre também em laudos vazios. Penso então que a necessidade laudatória torna qualquer crítica mais extensiva do que intensiva. O crítico então sai do limite de seu raio de competência discursiva em função de uma pretensa aparência de conhecimento sobre a totalidade da obra.
Tânia Brandão chega mais perto daquilo que Luiz Camilo Osório parece defender ao reivindicar uma crítica menos atenta a julgamentos sumários e mais engajada a refletir aspectos processuais e procedimentos da obra. Ela diz que “Na construção do espetáculo, o caminho foi ampliado por uma série de soluções que falam do mundo enquanto teatro a partir do lugar do indivíduo”. E é a partir dessa análise que ela reconhecerá no corte de trechos “políticos” da peça não uma traição a Shakespeare, mas uma edição autoral legítima da equipe de dramaturgistas empenhada numa tradução específica feita para o espetáculo. “O foco da montagem incide sobre a luta do jovem, deixa de lado o tema do poder e da sucessão”.
Esta minha crítica de críticas destina-se, portanto, não a buscar um modo padronizado de escrita. Mas empenha-se em prolongar os caminhos de uma discussão ética em favor de uma crítica que supere a apatia, o descaso e a desimportância conferida ao ato. Superação esta que a meu ver deve ser revestida de um paradoxal desbunde responsável, irreverente ( no sentido da não reverência ) e, no entanto, dotado de cuidado.
Um Hamlet hoje



“Hamlet é como uma esponja.
A menos que seja estilizado ou representado
com uma antiguidade, ele absorve imediatamente
todos os problemas de nosso tempo.”
Jan Kott
in: Shakespeare nosso contemporâneo, p 74.




O filme Hamlet (2000), de Michael Almereyda, atualiza a tragédia shakespeariana para os nossos dias. O reino da Dinamarca, local da ambientação original do texto de Shakespeare, foi transposto para o ambiente urbano e caótico da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Para Almereyda, a Dinamarca agora é uma grande corporação e as personagens se movimentam ao redor desta empresa. O Rei Hamlet assassinado, foi convertido no filme para presidente desta corporação, assim acontecendo com Cláudio, que era irmão do comandante maior da “Denmark Corporation” e usurpou seu lugar de mandatário, Gertrudes é a mulher do dono da companhia e o troca por Cláudio. Polônio e Laertes, são empregados de confiança. O príncipe Hamlet foi convertido em um estudante de artes que retorna ao Hotel Elsinore, onde reside sua família, após a conclusão de seu curso de cinema e para o ambiente da empresa de sua família. Hamlet se depara com os fatos que aconteceram na sua ausência. A morte misteriosa do pai, o casamento repentino de sua mãe com seu tio. Na peça, personagens como Horácio e Marcelo eram soldados a serviço da coroa, no filme há mudanças significativas. Horácio passa a ser um amigo íntimo de Hamlet e Marcelo é agora uma mulher chamada Marcela, namorada de Horácio. Outra alteração de destaque no filme é o fato de o jovem Hamlet ser um videomaker e com o intuito de desmascarar seu tio ele monta um filme pra mostrar a todos da diretoria da empresa sobre o ocorrido. Esta passagem originalmente é executada por uma trupe de Teatro e em uma apresentação teatral.

Na peça do bardo inglês, o príncipe Hamlet já se encontra no reino da Dinamarca quando os fatos que se sucedem ocorrem, enquanto que no filme de Michael Almereyda, o jovem Hamlet, que aparece aqui nesta atualização como o filho do dono de uma grande corporação, que é chamado por seus funcionários de “rei” e, por esta razão, por associação, o rapaz é alcunhado de “príncipe”, que retorna à Nova Iorque após passar uma temporada fora para concluir seus estudos encontra seu ambiente familiar virado às avessas. Assim como na peça de Shakespeare foi mantida intacta toda a angústia, ódio, ciúmes, incertezas, dúvidas e inquietações de Hamlet.

Creio que a personagem de Ofélia foi a que menos alteração sofreu em Hamlet (2000), pois ela continua sendo uma jovem omissa e sem atitudes próprias e ainda é usada como joguete para que Cláudio, Gertrudes e Polônio alcancem seus intentos. No caso dos dois primeiros, a moça é usada para descobrir a causa do comportamento estranho de Hamlet e para seu pai (Polônio), Ofélia servirá de escada para uma futura ascensão a cargos mais elevados dentro da empresa Dinamarca. A personagem, mesmo nos dias de hoje continua sem iniciativas para conquistar o seu amor. A atitude de Ofélia certamente seria outra, pois acredito que ela se rebelaria e se oporia fortemente aos descalabros de Polônio, atualizando, portanto, a característica de Ofélia e colocado-a em sintonia com a proposta de Almereyda.

Hamlet (2000) tem abertura para questões contemporâneas que não estariam na peça. O exemplo mais claro para esta afirmação está na parte final do filme, que diz respeito ao duelo entre Laertes e Hamlet. Originalmente o embate entre eles ocorria com floretes em punho. Já na versão de Almereyda, esse confronto ocorre com armas de fogo. Laertes também faz ameaças a Cláudio, apontando lhe um revólver, para que este revele quem é o responsável pelo assassínio de seu pai. Outro modelo que aparece no filme e não na peça é o fato da agressão que Hamlet sofre. Este toma um soco de Cláudio e no texto original em nenhum momento existe esta passagem de que o Rei teria agredido fisicamente seu sobrinho/enteado. Além destes, outro que se pode destacar é o que diz respeito à execução do ardil de Hamlet. O jovem faz um filme para desmascarar a farsa de seu tio, no entanto, no original essa passagem se dá através da representação de uma peça teatral para a corte de Cláudio e há também a existência de uma companhia teatral.

Hamlet 2000 tem em seu elenco: Ethan Hawke(Hamlet), Kyle MacLachlan (Claudio), Diane Venora (Gertrude), Sam Shepard (Rei Hamlet / Fantasma), Bill Murray (Polônio), Liev Schreiber (Laertes), Julia Stiles (Ofélia), Karl Geary (Horácio), Paula Malcomson (Marcella), Steve Zahn (Rosencrantz), Dechen Thurman (Guildenstern).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p 69 – 82.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

IN ON IT, a pérola e o mar.




IN ON IT, a pérola e o mar.
por Alessandra Colasanti
julho de 2009

IN ON IT é um texto do autor canadense Daniel MacIvor com tradução de Daniele Avila e direção de Enrique Diaz, em cena, os atores Emílio de Mello e Fernando Eiras.

IN ON IT. O primeiro contato com a peça é através do título. E nesta versão brasileira o título em inglês foi preservado. E preservado talvez seja mesmo uma boa palavra. Preservar é conservar, manter intacto algo que não se deseja perder. Em IN ON IT sonoridade e representação escrita estão conectadas de maneira uniforme. Sentido, sonoridade e grafia se complementam. Um círculo que se fecha, e não para de girar; dentro dele, e para além dele, a peça pulsa.

Textos e comentários entreouvidos e entrepinçados por aí confirmam o fascínio que a peça tem exercido junto a diferentes platéias. Um encanto que parece advir do equilíbrio entre aspecto emocional e sua derivação formal. O conteúdo, sobre vida, morte, amores e perdas, é por certo tocante, mas talvez esse não seja o epicentro dos afetos causados pela peça. Poderíamos imaginar o efeito dramático de IN ON IT como resultado direto de suas proposições formais; imaginar o drama avultando-se da forma. Mas, podemos ir além. Podemos num esforço de abstração buscar antever a estrutura do texto e a encenação de mãos dadas embalando a representação. Onde atores representam dores, amores e outros atores. Representações fugidias que aparecem e desaparecem. Como aquele espelhinho que tenta captar a luz do sol, ora vemos o reflexo da luz, ora vemos a mão que segura o espelhinho.

Gosto de usar aqui a palavra peça ao invés da palavra espetáculo. A palavra espetáculo fala de visibilidade. O que salta aos olhos em IN ON IT é mais o que não se vê, é o que se pressente. O que seduz é o equilíbrio entre diferentes instâncias, entre instâncias díspares, díspares e complementares. É o imponderável que se encontra fora do conteúdo dramático e fora da estrutura formal, e que é ao mesmo tempo balizado por eles. Imponderável, porém presente.

Gosto de imaginar que a empatia da peça não se encontra exatamente na representação do homem que irá morrer em cena, ou na história de amor que se extingue. Podemos tentar encontrar essa empatia nos procedimentos cênicos e literários, na sucessão de planos temporais, na metalinguagem, na precisa e comovente interpretação dos atores. Podemos tentar encontrar essa empatia, mas ela não está circunscrita, pelo contrário, ela está em um outro plano. Ela está entre as partes. Ela está livre, passeando e iluminando todas as partes. Esse entre é o trabalho. Esse entre é a encenação.

Na pérola temos a casca, a jóia, o mar lá fora e o entre que é a ostra. A casca e a ostra podemos guardar, desenhar ou destruir, o gosto da ostra só se pode sentir. Há quem diga que ostra tem gosto de mar. As escolhas da direção contribuem para potencializar as qualidades do texto, e mais do que isso, para transformá-lo. Para salvá-lo dele mesmo. O resultado parece resguardar o texto de seu próprio drama. A dramaticidade que se vê em cena (ou não se vê) opera entre vias, entre a composição e a decomposição. A síntese dessa espécie de drama dialético estaria no equilíbrio das escolhas, não no tema, nem na forma. O resultado é o que resta. E o que resta é o que está fora, como a memória do gosto do mar.

Poderíamos dizer que a peça apóia-se sobre um eixo dicotômico. Na base desse eixo encontrar-se-iam de um lado o excesso e transbordamento das experiências de vida dos personagens, e, do outro, a economia dos instrumentos cênicos, a cena limpa, a interpretação que lateja em sua contenção. A peça parte de um tencionamento estrutural sim, mas ultrapassa o dualismo dialético. É a pluralidade de pistas discursivas que determina o tencionamento dramático. A ação dramática se dá no embate destes planos, no choque, no avançar entrecortado, e também nos entre espaços, nas lacunas do que se conta e do que se deixa de contar, do que se mostra e do que se deixa de mostrar. É da fricção entre múltiplos tempos e discursos, e, portanto, no manejo desse sistema, que irrompe a força da peça.

A direção opta por códigos claros de leitura para que o espectador possa distinguir os diferentes planos de ação temporal. Cada plano possui códigos específicos de luz, som e figurino, que se alternam continuamente. As quebras ao mesmo distanciam e aproximam o espectador. Distanciam porque interferem na ilusão dramática. E aproximam porque determinam ritmo à cena. Funcionam como ondas. E nesse ondejar o espectador é levado e enlevado. A alternância é em si. A alternância é o próprio sistema de manutenção da tensão cênica.

Há trabalhos que encantam pela coragem, pela jovialidade, pela originalidade, pelo arrojo, pelo ímpeto de ruptura, pelo desejo de novas formas de expressão, pela proposição de linguagens. Há a direção que prioriza potencializar o que num texto há de mais instigante. Há a direção que vê, há a direção que quer ser vista, há a direção que quer se ver, e há a direção simplesmente perdida, cega, que nada vê. O mérito de IN ON IT parece encontrar-se na justa adequação de todos os ingredientes da cena. O desafio da montagem de Diaz parece repousar na justeza da condução do tempo, do estabelecimento do ritmo e da ação, do equilíbrio das atuações. Ou seja, no aprumo dessa carpintaria. O que não é nem pouco, nem fácil. Adequar-se aqui não tem a ver com limitar-se, tem a ver com visão e generosidade. Ser generoso é ir além de si mesmo. Generosidade com o texto, com a encenação, com a platéia, e com a própria história de Diaz. Diaz intuiu que talvez não coubesse imprimir ali sua marca. Marca tem a ver com morte. Marcar sim é limitar. O que prova que, no contexto indissociável de sua obra, IN ON IT é sim experimentação. E é também um gesto corajoso, ao mesmo tempo jovial e maduro. A peça, por oposição, oxigena o percurso de pesquisa do diretor. E, assim como, sua direção liberta o texto de MacIvor da armadilha de seu drama, IN ON IT amplia o trabalho de pesquisa de Diaz, e o projeta para além de si mesmo. Liberta e preserva, transforma e reforça a sensibilidade estética desse artista.

Há que se ter em mente que uma pérola pode ser vista de diferentes distâncias. De uma determinada distância ela parecerá perfeitamente lisa, de outra ela desaparecerá, mas se chegarmos mais perto, e ajustarmos o olhar a uma lente mais minuciosa, ver-se-á uma série de reentrâncias, uma infinidade de pequenas falhas. Assim é a encenação de IN ON IT, aparentemente perfeita, redonda e amalgamada, mas as asperezas, imperfeições, contradições e incertezas que fazem parte da vida e da arte estão também lá, paradoxalmente lá, entre arestas e lisuras.

Importante dizer que pérola é também o grão que ilumina e reflete. Em “A moça com o brinco de pérola”, da escritora americana Tracy Chevalier, todo um romance é escrito em torno da pequena faísca que assegura equilíbrio e genialidade ao quadro de Johannes Vermeer, uma metáfora ao que não se nota, mas faz toda a diferença. IN ON IT é assim, uma pequena fonte de luz na carreira do diretor Enrique Diaz, uma pequena fonte de luz na atual cena carioca, uma pequena fonte de luz na vida de quem tem o prazer de assistir à peça. Uma fonte de luz tão delicada e intensa quanto a concreção densa que se forma nas conchas de moluscos a partir da deposição de material nacarado sobre um grão de areia ou uma partícula qualquer. O resto é o mar. (Alessandra Colasanti)