quarta-feira, 8 de julho de 2009

Até que Enfim Hamlet

“Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.
E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga as idéias que deveriam permanecer divinas; pois longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.”
Antonin Artaud
in, O teatro e seu duplo, pg. 03.

Somente um homem absolutamente impregnado de seu próprio tempo, pode ultrapassá-lo. Assim foi Shakespeare, eternizado por uma obra que vence séculos e que provavelmente vencerá milênios, pois foi um autor que conseguiu tocar numa matéria humana tão primordial que perpassa existências distintas em tempos distintos.
Hamlet é acima de tudo uma peça que avança brutalmente sobre a condição existencial do homem, uma obra que não se fecha em si mesma, e que faz de seu personagem um mito. Afinal, essa natureza questionadora em relação ao sentido de nossa própria vida e morte e sobre os atos que nos circundam e que nos move a agir, experienciamos em nossa vida, em nosso cotidiano e faz parte da condição do homem contemporâneo.
Artaud construiu um conceito de crueldade como “uma ação levada ao extremo...rigor, aplicação e decisão implacáveis”(ibidem:pg118), onde a cena era o espaço de atuação. Portanto acredito que o estudo do texto no exercício da encenação realizado pela companhia dos Atores em Hamlet.com entra em consonância com a proposta teatral de Antonin Artaud, de um teatro que se realiza através da encenação. No momento em que se propuseram realizar uma experimentação da obra, uma “autópsia” em suas próprias palavras eles alcançaram uma qualidade simbólica que corresponde a riqueza do seu objeto de estudo, que abre os caminhos para a vastidão dos infinitos significados e implicações do texto.
Sem abrir mão da contemporaneidade desde do título, afinal Ensaio.Hamlet é uma forma que se assemelha aos endereços da internet, a ferramenta mais avançada e utilizada de comunicação globalizada, uma tecnologia que mudou a maneira do homem existir. A encenação não se estabiliza num só momento histórico, fazendo esboços em tempos e em lugares diferentes. Na cena em que se encadeia a morte de Ofélia, a rainha canta um Blues que nos leva ás margens do Mississipi, e a jovem entra espalhando baldes pelo espaço para as goteiras, suas lágrimas infindáveis pela morte do pai e pela tragédia vivida com Hamlet, logo em seguida ela se afoga depois de despejar em si os litros de um garrafão de água, um pequeno exemplo da espetacular qualidade e quantidade de símbolos que a companhia consegue desenvolver através de ações intensas, como quando Laertes e Hamlet brigam encima do túmulo de Ofélia e esta é um pedaço de carne cru passado a ferro pelos dois. O ferro e carne têm um significado que extrapola conceitos factuais e lança poética e metafisicamente os espectadores numa sensibilização que não conhece padrões pré estabelecidos.
Ao assistir a encenação de Ensaio.Hamlet vejo a mais profunda cumplicidade entre texto e encenação, infinitamente maior que qualquer montagem que se diga fiel ao texto, pois todas as inserções e colagens propostas pela companhia só aumentaram a força poética e a multiplicidade de possibilidades que a obra abrange, pois ela é política, psicológica, histórica, drama familiar, tudo ao mesmo tempo.
Assim como é um texto para ser relido diversas vezes ao longo da vida, esta montagem é deliciosa de se ver e rever, pois não é consumível na sua totalidade, assim como o texto de Shakespeare ela deixa lacunas e que a cada novo testemunho terá um outro preenchimento por parte do espectador. Acredito que ao realizá-la repetidamente a própria experimentação se enriquece ainda mais, como um vinho que amadurece a cada ano.
Definitivamente toda a magia do universo de Hamlet está presente na montagem da Cia dos Atores. E o melhor, os realizadores de tão inteligente encenação, colocam o espectador num espaço de ser pensante, criador e articulador da história e dos símbolos propostos por eles em sua decodificação das suas experiências e ações, fato raríssimo no teatro carioca, que vêem colocando o espectador cada vez mais no lugar de macaco de auditório.

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