terça-feira, 7 de julho de 2009

Um ensaio sobre algumas das críticas de Hamlet e as Razões da Crítica .

Nota: Os objetos aqui trabalhados são críticas de autoria de Jefferson Lessa, Bárbara Heliodora, Ana Kutner e Tânia Brandão para a peça Hamlet, publicadas no “O Globo”. Além desses objetos, faço uso do livro “Razões da Crítica” de Luiz Camilo Osório.

Nota 2: HAMLET de William Shakespeare. Tradução: Aderbal Freire-Filho com Barbara Harrington e Wagner Moura. Direção:Aderbal Freire-Filho. Em cartaz de 13 de março a 31 de maio de 2009 no Oi Casa Grande, Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon. Sextas e sábados, às 20h30. Domingos, às 19h.
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Penso que todo autor de crítica pode e deve munir-se de certa dose de irresponsabilidade no sentido de não temer abalar o senso comum. Mas é preciso que a liberdade oriunda dessa irresponsabilidade (que é legítima) não se confunda com uma coisa qualquer, com uma falta de parâmetros, de critérios. Não defendo aqui um modo padronizado, único, de redação. Mas há que se buscar pistas e caminhos que colaborem para a atribuição de credulidade ao posicionamento crítico.
Em seu livro As Razões da crítica, Luiz Camilo Osório afirma:“Há que se julgar justamente porque não temos mais nenhuma certeza a priori sobre como uma obra cria sentido”. Ao dizê-lo, faz menção a um ajuizamento autoral, mas não autoritário que, dividido com o público, contribuiria para a criação de um espaço comum onde a partir do dissenso poder-se-ia tanger algumas considerações importantes em torno do fenômeno artístico num tempo de múltiplas incertezas acerca de sua natureza. É sempre arriscado atribuir função às coisas no campo da arte. Mas uma provável função da crítica seria então buscar uma dinâmica de esclarecimento por destrinchamento e exploração do fenômeno. Nesse sentido, não pode haver maior desserviço do que uma crítica teatral que feche suas conclusões em “bom” ou “ruim”. O que estamos explorando, esclarecendo ou destrinchando ao chamar algo de bom ou ruim?
Assim, começo agora de fato meu ensaio sobre críticas a partir da redação de Jefferson Lessa. O que significa ele dizer, por exemplo, que “A luz de Maneco Quinderé é bonita e luxuosa”? Ou dizer que o cenário de Fernando Mello e Rostand Albuquerque é “moderno, bonito e funcional”? Em que medida, de fato, isso contempla o trabalho dos artistas ou serve de algum indicativo ao público? A redação de Jéferson Lessa, apesar de ter o desbunde necessário e louvável para um crítico teatral, segue parâmetros de ajuizamento ultrapassados.
Primeiro, por uma discussão que se encerra em adjetivos. Segundo, pela crença na existência de uma essência das personagens. Personagens não são almas que vagam por aí à procura de atores que as corporifiquem. E essa é uma discussão datada, suficientemente abalada e encerrada no século passado. Dizer que “se trai a essência” de um personagem pode significar ignorar o gesto autoral presente no trabalho do ator, da direção e dos demais ramos da produção teatral. Acreditar numa única essência, estável, de personagens é relegar ao ator a função de executor e ao diretor a involução para a condição de encenador, que somente materializaria as idéias de um texto.
Bárbara Heliodora também se mostra adjetivacional e laudatória. Mas, vai mais além em seu desserviço por sua característica marcantemente normativa. Ela incorre em colocações pueris como “É boa a luz de Maneco Quinderé e interessante a música de Rodrigo Amarante”. E é evidente que, em se tratando de Shakespeare, há a atribuição de valor canônico ao texto. Seus argumentos fazem menção sempre a como o texto e os personagens são maiores do que aquilo que se fez deles em cena. E isso é feito em total desconsideração com a intenção e os recursos estilísticos autorais dos artistas. Um exemplo, o figurino. “Os figurinos de Marcelo Pies são fraquíssimos, os melhores sendo os que ficam em trajes simples e contemporâneos.”
O que importa ao desenvolvimento do pensamento em torno da arte não é se os figurinos são fracos, mas como e porque são fracos ou fortes. Na condição de crítico faz parte saber que ele foi feito a partir de camisas sociais brancas masculinas e contemporâneas que, em resultado mosaico, sugerem algo entre um vestido de noiva e uma camisa de força. A partir de tais especificidades eu posso julgar se essa arte traz em si ou não alguma potência.
Ana Kutner já parece ter noção e propriedade para falar de caminhos da cena enquanto jogo. “ É a deliciosa proposta de fazer teatro no momento em que é feito (...) Estar em cena é uma necessidade de interferir na história que todos, atores e platéia, vêem.” Esse caráter de intervenção, naturalmente, será pouco compreendido por quem quer que ponha a literatura à frente da inteireza material e presente da cena. Intervir é afirmar-se, é existir. A intervenção é valorada positivamente por Ana Kutner também quando ela diz que “Gilbray Coutinho como Polônio aproveita todos os estímulos que a cena lhe sugere, nos apresentando com um novo colorido para um polônio bem humorado e inteligente.”
Contudo ao tentar no último parágrafo dar conta de todos os outros setores da peça ela incorre também em laudos vazios. Penso então que a necessidade laudatória torna qualquer crítica mais extensiva do que intensiva. O crítico então sai do limite de seu raio de competência discursiva em função de uma pretensa aparência de conhecimento sobre a totalidade da obra.
Tânia Brandão chega mais perto daquilo que Luiz Camilo Osório parece defender ao reivindicar uma crítica menos atenta a julgamentos sumários e mais engajada a refletir aspectos processuais e procedimentos da obra. Ela diz que “Na construção do espetáculo, o caminho foi ampliado por uma série de soluções que falam do mundo enquanto teatro a partir do lugar do indivíduo”. E é a partir dessa análise que ela reconhecerá no corte de trechos “políticos” da peça não uma traição a Shakespeare, mas uma edição autoral legítima da equipe de dramaturgistas empenhada numa tradução específica feita para o espetáculo. “O foco da montagem incide sobre a luta do jovem, deixa de lado o tema do poder e da sucessão”.
Esta minha crítica de críticas destina-se, portanto, não a buscar um modo padronizado de escrita. Mas empenha-se em prolongar os caminhos de uma discussão ética em favor de uma crítica que supere a apatia, o descaso e a desimportância conferida ao ato. Superação esta que a meu ver deve ser revestida de um paradoxal desbunde responsável, irreverente ( no sentido da não reverência ) e, no entanto, dotado de cuidado.

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