quarta-feira, 1 de julho de 2009

Um rascunho de Hamlet

Por Dâmaris Grün


"Não se trata de modo algum – Preciso dizer? - de uma atualidade forçada, de um Hamlet encenado numa cave de jovens existencialistas. Aliás, ele já foi representado de fraque ou em roupas de circo, em armadura medieval ou trajes do Renascimento. O que interessa não é o vestuário. O importante é chegar, por intermédio do texto de Shakespeare, à nossa experiência contemporânea, à nossa angústia e a nossa sensibilidade."(Kott: 2003, 70).


Começo esse ensaio com uma citação de Jan Kott em seu famoso Shakespeare, nosso contemporâneo, que considero de primordial importância para se pensar a encenação de um clássico da dramaturgia ocidental dentro das perspectivas e experimentações do teatro contemporâneo. As palavras de Kott deixam claro um sentimento já exposto e dissecado em cena por vários encenadores e grupos de teatro pelo mundo. Dar a ver um grande texto é ainda uma experiência difícil e que requer um toque de ousadia sim, para não ser enfadonho no palco. Kott alerta para a necessidade de ser atual sem ser necessariamente contemporâneo no que diz respeito às vestes ou cenário e outros elementos que compõem uma cena; mas trazer essa atualidade de Shakespeare por meio das vozes que evocam os personagens, por meio das questões existenciais ali expostas nesse texto já tão encenado pelo teatro ocidental. Nesse sentido a encenação de Ensaio.Hamlet, engendrada pela Cia dos Atores tendo estreado em 2005 sob direção de Enrique Diaz, traz precisamente essa atualização, essa aproximação da história do príncipe dinamarquês ao público que lotava o teatro de arena do Espaço Sesc de Copacabana na época de sua estreia.



A montagem fazia uma espécie de “releitura” do já bastante encenado clássico referido. O que se operava em cena, como uma força motriz, era uma clara idéia de apropriação, de tomar um texto e desconstruí-lo sem “respeito” algum. A questão não é aqui que o texto teatral perde sua “validade” ou importância. Porém não será mais o centro dessa montagem, o texto aqui é um material a ser dissecado ao extremo, para uma perspectiva inteiramente diferente do teatro em relação ao texto dramático. No teatro o texto se apresenta como um material, uma tessitura que pode ser esgarçada, caso empreendido pela companhia carioca de Enrique Diaz. O que podíamos ver e perceber no palco era o texto, que data do Renascimento, o grande clássico, como uma espécie de “pretexto” para as questões que o grupo queria discutir, sejam elas do âmbito estético (e principalmente esta), como existenciais, psicológicas e humanas. A peça de Shakespeare serviu aqui como uma espécie de força geradora de questões para a cena, para os atores, direção e público, um cúmplice daquele acontecimento real, possuindo um estatuto independente em relação a obra cênica final. A partir de tal texto partiram para investigações cênicas, estéticas do trabalho criador e imagético do grupo. Nesse sentido não houve uma preocupação em ser “fiel”, ou guardar um demasiado respeito ao texto e autor. Pelo menos não aquela em que se pretende seguir pressupostos shakespereanos, figurinos de época, rebuscamento de falas não coloquiais ou um cuidado acurado em não subtrair falas, palavras e indicações temporais e espaciais dadas pelo autor. Há uma vontade de partir do referente texto e implodí-lo de dentro para fora resultando em migalhas esmiuçadas que se concretizam em cena. Não que a história não seja contada. Ainda há a fabula posta em cena, há o texto como esqueleto da cena. A trajetória do príncipe dinamarquês e seus infortúnios na vontade e contra vontade de vingar a morte de seu pai ainda se mostra e move a vontade cênica proposta pela trupe. Ainda estão todos os principais personagens que compõem aquela tragédia. Mas o roteiro é preenchido por tantos elementos exteriores do imaginário do grupo, da atualidade, da linguagem desenvolvida por eles que o intuito não será mais “dar conta” daquela fábula, ou ser verossímil e coerente come como conta a história. As possíveis imagens que ele sugere e traz à tona é o que se leva mais em conta.

Ao assistirmos um trabalho como esse empreendido pela Cia dos Atores, podemos trazer ao cerne do teatro a questão de como ser fiel a um grande texto, ou se ainda há a possibilidade em ser fiel ou se pode ser algum dia. O que parece transparecer nessa montagem são as diversas possibilidades que um bom e grande texto pode proporcionar para a empreitada estética. Diversas leituras, reflexões e ângulos que podem ser focados a partir dele como objeto para livre manuseio. Não há fórmulas preestabelecidas de se encenar Shakespeare. Não há formas dadas a priori para sua concepção. A priori temos suas questões atemporais que transcendem épocas e mais épocas e a maneira como os artistas às tomaram para si, como é bem característico da montagem em questão. A “bagunça” proposta por Enrique Diaz, o caos de elementos cênicos, a profusão de imagens, a polifonia de vozes que se multiplicam no espaço, vídeos que desdobram e atualizam a cena, um caráter melancólico e bufo impresso pelos atores/performers que se revezam em alguns personagens da tragédia eram elementos que formavam uma cena híbrida, tributária do teatro pós - dramático. A questão é que não há fórmulas para se encenar Shakespeare ou qualquer clássico de nossa dramaturgia. Não há como ser fiel a uma pretensa forma de montar esse texto, pois sempre será uma pretensa idéia e sempre uma criação em cima do texto. Basta ser mais ou menos ousado. Ensaio.Hamlet foi um rabisco, um rascunho, uma possibilidade de contar e dar visão ao clássico eterno e universal do bardo inglês.

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