
IN ON IT, a pérola e o mar.
por Alessandra Colasanti
julho de 2009
IN ON IT é um texto do autor canadense Daniel MacIvor com tradução de Daniele Avila e direção de Enrique Diaz, em cena, os atores Emílio de Mello e Fernando Eiras.
IN ON IT. O primeiro contato com a peça é através do título. E nesta versão brasileira o título em inglês foi preservado. E preservado talvez seja mesmo uma boa palavra. Preservar é conservar, manter intacto algo que não se deseja perder. Em IN ON IT sonoridade e representação escrita estão conectadas de maneira uniforme. Sentido, sonoridade e grafia se complementam. Um círculo que se fecha, e não para de girar; dentro dele, e para além dele, a peça pulsa.
Textos e comentários entreouvidos e entrepinçados por aí confirmam o fascínio que a peça tem exercido junto a diferentes platéias. Um encanto que parece advir do equilíbrio entre aspecto emocional e sua derivação formal. O conteúdo, sobre vida, morte, amores e perdas, é por certo tocante, mas talvez esse não seja o epicentro dos afetos causados pela peça. Poderíamos imaginar o efeito dramático de IN ON IT como resultado direto de suas proposições formais; imaginar o drama avultando-se da forma. Mas, podemos ir além. Podemos num esforço de abstração buscar antever a estrutura do texto e a encenação de mãos dadas embalando a representação. Onde atores representam dores, amores e outros atores. Representações fugidias que aparecem e desaparecem. Como aquele espelhinho que tenta captar a luz do sol, ora vemos o reflexo da luz, ora vemos a mão que segura o espelhinho.
Gosto de usar aqui a palavra peça ao invés da palavra espetáculo. A palavra espetáculo fala de visibilidade. O que salta aos olhos em IN ON IT é mais o que não se vê, é o que se pressente. O que seduz é o equilíbrio entre diferentes instâncias, entre instâncias díspares, díspares e complementares. É o imponderável que se encontra fora do conteúdo dramático e fora da estrutura formal, e que é ao mesmo tempo balizado por eles. Imponderável, porém presente.
Gosto de imaginar que a empatia da peça não se encontra exatamente na representação do homem que irá morrer em cena, ou na história de amor que se extingue. Podemos tentar encontrar essa empatia nos procedimentos cênicos e literários, na sucessão de planos temporais, na metalinguagem, na precisa e comovente interpretação dos atores. Podemos tentar encontrar essa empatia, mas ela não está circunscrita, pelo contrário, ela está em um outro plano. Ela está entre as partes. Ela está livre, passeando e iluminando todas as partes. Esse entre é o trabalho. Esse entre é a encenação.
Na pérola temos a casca, a jóia, o mar lá fora e o entre que é a ostra. A casca e a ostra podemos guardar, desenhar ou destruir, o gosto da ostra só se pode sentir. Há quem diga que ostra tem gosto de mar. As escolhas da direção contribuem para potencializar as qualidades do texto, e mais do que isso, para transformá-lo. Para salvá-lo dele mesmo. O resultado parece resguardar o texto de seu próprio drama. A dramaticidade que se vê em cena (ou não se vê) opera entre vias, entre a composição e a decomposição. A síntese dessa espécie de drama dialético estaria no equilíbrio das escolhas, não no tema, nem na forma. O resultado é o que resta. E o que resta é o que está fora, como a memória do gosto do mar.
Poderíamos dizer que a peça apóia-se sobre um eixo dicotômico. Na base desse eixo encontrar-se-iam de um lado o excesso e transbordamento das experiências de vida dos personagens, e, do outro, a economia dos instrumentos cênicos, a cena limpa, a interpretação que lateja em sua contenção. A peça parte de um tencionamento estrutural sim, mas ultrapassa o dualismo dialético. É a pluralidade de pistas discursivas que determina o tencionamento dramático. A ação dramática se dá no embate destes planos, no choque, no avançar entrecortado, e também nos entre espaços, nas lacunas do que se conta e do que se deixa de contar, do que se mostra e do que se deixa de mostrar. É da fricção entre múltiplos tempos e discursos, e, portanto, no manejo desse sistema, que irrompe a força da peça.
A direção opta por códigos claros de leitura para que o espectador possa distinguir os diferentes planos de ação temporal. Cada plano possui códigos específicos de luz, som e figurino, que se alternam continuamente. As quebras ao mesmo distanciam e aproximam o espectador. Distanciam porque interferem na ilusão dramática. E aproximam porque determinam ritmo à cena. Funcionam como ondas. E nesse ondejar o espectador é levado e enlevado. A alternância é em si. A alternância é o próprio sistema de manutenção da tensão cênica.
Há trabalhos que encantam pela coragem, pela jovialidade, pela originalidade, pelo arrojo, pelo ímpeto de ruptura, pelo desejo de novas formas de expressão, pela proposição de linguagens. Há a direção que prioriza potencializar o que num texto há de mais instigante. Há a direção que vê, há a direção que quer ser vista, há a direção que quer se ver, e há a direção simplesmente perdida, cega, que nada vê. O mérito de IN ON IT parece encontrar-se na justa adequação de todos os ingredientes da cena. O desafio da montagem de Diaz parece repousar na justeza da condução do tempo, do estabelecimento do ritmo e da ação, do equilíbrio das atuações. Ou seja, no aprumo dessa carpintaria. O que não é nem pouco, nem fácil. Adequar-se aqui não tem a ver com limitar-se, tem a ver com visão e generosidade. Ser generoso é ir além de si mesmo. Generosidade com o texto, com a encenação, com a platéia, e com a própria história de Diaz. Diaz intuiu que talvez não coubesse imprimir ali sua marca. Marca tem a ver com morte. Marcar sim é limitar. O que prova que, no contexto indissociável de sua obra, IN ON IT é sim experimentação. E é também um gesto corajoso, ao mesmo tempo jovial e maduro. A peça, por oposição, oxigena o percurso de pesquisa do diretor. E, assim como, sua direção liberta o texto de MacIvor da armadilha de seu drama, IN ON IT amplia o trabalho de pesquisa de Diaz, e o projeta para além de si mesmo. Liberta e preserva, transforma e reforça a sensibilidade estética desse artista.
Há que se ter em mente que uma pérola pode ser vista de diferentes distâncias. De uma determinada distância ela parecerá perfeitamente lisa, de outra ela desaparecerá, mas se chegarmos mais perto, e ajustarmos o olhar a uma lente mais minuciosa, ver-se-á uma série de reentrâncias, uma infinidade de pequenas falhas. Assim é a encenação de IN ON IT, aparentemente perfeita, redonda e amalgamada, mas as asperezas, imperfeições, contradições e incertezas que fazem parte da vida e da arte estão também lá, paradoxalmente lá, entre arestas e lisuras.
Importante dizer que pérola é também o grão que ilumina e reflete. Em “A moça com o brinco de pérola”, da escritora americana Tracy Chevalier, todo um romance é escrito em torno da pequena faísca que assegura equilíbrio e genialidade ao quadro de Johannes Vermeer, uma metáfora ao que não se nota, mas faz toda a diferença. IN ON IT é assim, uma pequena fonte de luz na carreira do diretor Enrique Diaz, uma pequena fonte de luz na atual cena carioca, uma pequena fonte de luz na vida de quem tem o prazer de assistir à peça. Uma fonte de luz tão delicada e intensa quanto a concreção densa que se forma nas conchas de moluscos a partir da deposição de material nacarado sobre um grão de areia ou uma partícula qualquer. O resto é o mar. (Alessandra Colasanti)
por Alessandra Colasanti
julho de 2009
IN ON IT é um texto do autor canadense Daniel MacIvor com tradução de Daniele Avila e direção de Enrique Diaz, em cena, os atores Emílio de Mello e Fernando Eiras.
IN ON IT. O primeiro contato com a peça é através do título. E nesta versão brasileira o título em inglês foi preservado. E preservado talvez seja mesmo uma boa palavra. Preservar é conservar, manter intacto algo que não se deseja perder. Em IN ON IT sonoridade e representação escrita estão conectadas de maneira uniforme. Sentido, sonoridade e grafia se complementam. Um círculo que se fecha, e não para de girar; dentro dele, e para além dele, a peça pulsa.
Textos e comentários entreouvidos e entrepinçados por aí confirmam o fascínio que a peça tem exercido junto a diferentes platéias. Um encanto que parece advir do equilíbrio entre aspecto emocional e sua derivação formal. O conteúdo, sobre vida, morte, amores e perdas, é por certo tocante, mas talvez esse não seja o epicentro dos afetos causados pela peça. Poderíamos imaginar o efeito dramático de IN ON IT como resultado direto de suas proposições formais; imaginar o drama avultando-se da forma. Mas, podemos ir além. Podemos num esforço de abstração buscar antever a estrutura do texto e a encenação de mãos dadas embalando a representação. Onde atores representam dores, amores e outros atores. Representações fugidias que aparecem e desaparecem. Como aquele espelhinho que tenta captar a luz do sol, ora vemos o reflexo da luz, ora vemos a mão que segura o espelhinho.
Gosto de usar aqui a palavra peça ao invés da palavra espetáculo. A palavra espetáculo fala de visibilidade. O que salta aos olhos em IN ON IT é mais o que não se vê, é o que se pressente. O que seduz é o equilíbrio entre diferentes instâncias, entre instâncias díspares, díspares e complementares. É o imponderável que se encontra fora do conteúdo dramático e fora da estrutura formal, e que é ao mesmo tempo balizado por eles. Imponderável, porém presente.
Gosto de imaginar que a empatia da peça não se encontra exatamente na representação do homem que irá morrer em cena, ou na história de amor que se extingue. Podemos tentar encontrar essa empatia nos procedimentos cênicos e literários, na sucessão de planos temporais, na metalinguagem, na precisa e comovente interpretação dos atores. Podemos tentar encontrar essa empatia, mas ela não está circunscrita, pelo contrário, ela está em um outro plano. Ela está entre as partes. Ela está livre, passeando e iluminando todas as partes. Esse entre é o trabalho. Esse entre é a encenação.
Na pérola temos a casca, a jóia, o mar lá fora e o entre que é a ostra. A casca e a ostra podemos guardar, desenhar ou destruir, o gosto da ostra só se pode sentir. Há quem diga que ostra tem gosto de mar. As escolhas da direção contribuem para potencializar as qualidades do texto, e mais do que isso, para transformá-lo. Para salvá-lo dele mesmo. O resultado parece resguardar o texto de seu próprio drama. A dramaticidade que se vê em cena (ou não se vê) opera entre vias, entre a composição e a decomposição. A síntese dessa espécie de drama dialético estaria no equilíbrio das escolhas, não no tema, nem na forma. O resultado é o que resta. E o que resta é o que está fora, como a memória do gosto do mar.
Poderíamos dizer que a peça apóia-se sobre um eixo dicotômico. Na base desse eixo encontrar-se-iam de um lado o excesso e transbordamento das experiências de vida dos personagens, e, do outro, a economia dos instrumentos cênicos, a cena limpa, a interpretação que lateja em sua contenção. A peça parte de um tencionamento estrutural sim, mas ultrapassa o dualismo dialético. É a pluralidade de pistas discursivas que determina o tencionamento dramático. A ação dramática se dá no embate destes planos, no choque, no avançar entrecortado, e também nos entre espaços, nas lacunas do que se conta e do que se deixa de contar, do que se mostra e do que se deixa de mostrar. É da fricção entre múltiplos tempos e discursos, e, portanto, no manejo desse sistema, que irrompe a força da peça.
A direção opta por códigos claros de leitura para que o espectador possa distinguir os diferentes planos de ação temporal. Cada plano possui códigos específicos de luz, som e figurino, que se alternam continuamente. As quebras ao mesmo distanciam e aproximam o espectador. Distanciam porque interferem na ilusão dramática. E aproximam porque determinam ritmo à cena. Funcionam como ondas. E nesse ondejar o espectador é levado e enlevado. A alternância é em si. A alternância é o próprio sistema de manutenção da tensão cênica.
Há trabalhos que encantam pela coragem, pela jovialidade, pela originalidade, pelo arrojo, pelo ímpeto de ruptura, pelo desejo de novas formas de expressão, pela proposição de linguagens. Há a direção que prioriza potencializar o que num texto há de mais instigante. Há a direção que vê, há a direção que quer ser vista, há a direção que quer se ver, e há a direção simplesmente perdida, cega, que nada vê. O mérito de IN ON IT parece encontrar-se na justa adequação de todos os ingredientes da cena. O desafio da montagem de Diaz parece repousar na justeza da condução do tempo, do estabelecimento do ritmo e da ação, do equilíbrio das atuações. Ou seja, no aprumo dessa carpintaria. O que não é nem pouco, nem fácil. Adequar-se aqui não tem a ver com limitar-se, tem a ver com visão e generosidade. Ser generoso é ir além de si mesmo. Generosidade com o texto, com a encenação, com a platéia, e com a própria história de Diaz. Diaz intuiu que talvez não coubesse imprimir ali sua marca. Marca tem a ver com morte. Marcar sim é limitar. O que prova que, no contexto indissociável de sua obra, IN ON IT é sim experimentação. E é também um gesto corajoso, ao mesmo tempo jovial e maduro. A peça, por oposição, oxigena o percurso de pesquisa do diretor. E, assim como, sua direção liberta o texto de MacIvor da armadilha de seu drama, IN ON IT amplia o trabalho de pesquisa de Diaz, e o projeta para além de si mesmo. Liberta e preserva, transforma e reforça a sensibilidade estética desse artista.
Há que se ter em mente que uma pérola pode ser vista de diferentes distâncias. De uma determinada distância ela parecerá perfeitamente lisa, de outra ela desaparecerá, mas se chegarmos mais perto, e ajustarmos o olhar a uma lente mais minuciosa, ver-se-á uma série de reentrâncias, uma infinidade de pequenas falhas. Assim é a encenação de IN ON IT, aparentemente perfeita, redonda e amalgamada, mas as asperezas, imperfeições, contradições e incertezas que fazem parte da vida e da arte estão também lá, paradoxalmente lá, entre arestas e lisuras.
Importante dizer que pérola é também o grão que ilumina e reflete. Em “A moça com o brinco de pérola”, da escritora americana Tracy Chevalier, todo um romance é escrito em torno da pequena faísca que assegura equilíbrio e genialidade ao quadro de Johannes Vermeer, uma metáfora ao que não se nota, mas faz toda a diferença. IN ON IT é assim, uma pequena fonte de luz na carreira do diretor Enrique Diaz, uma pequena fonte de luz na atual cena carioca, uma pequena fonte de luz na vida de quem tem o prazer de assistir à peça. Uma fonte de luz tão delicada e intensa quanto a concreção densa que se forma nas conchas de moluscos a partir da deposição de material nacarado sobre um grão de areia ou uma partícula qualquer. O resto é o mar. (Alessandra Colasanti)
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