SOBRE O SUICÍDIO: O QUE POSSO SABER?
Marx (1818-1893) interessou-se, por volta dos vinte e oito anos, pela questão do suicídio. Para estudá-la recorreu aos escritos de um ex-arquivista francês − Jacques Peuchet: Mémoires Tires des Arquives de la Police de Paris, publicado em 1938. Diante da compilação dos episódios ligados a suicídios na Paris oitocentista, Marx entusiasma-se com os agudos comentários de Peuchet, que detecta no suicídio a reverberação sintomática de uma sociedade doente.
O resultado desse estudo foi publicado numa revista proletária alemã, em 1846. O ensaio intitulado Peuchet: Von Sebstmord, foi publicado pela Editora Boitempo, em 2003, com tradução direta do alemão.
A tensão incontornável que conecta o político e o privado, o público e o particular, o social e o psíquico parece expressar-se, nesses relatos, pelo grande número de casos de suicídio envolvendo mulheres jovens, de famílias burguesas, a maioria por afogamento, quase sempre no Rio Sena.
A Cia. Ensaio Aberto, dona de uma longa trajetória de trabalhos focados, em sua maioria, nos embates político-existenciais entre o indivíduo e a sociedade foi buscar nesse texto de Marx/Peuchet as diretrizes para a encenação, com o mesmo título. "Sobre o Suicídio", estreou em abril de 2009 no Espaço SESC, sob a direção de Luís Fernando Lobo que − simultaneamente ao espetáculo − promoveu um ciclo de debates sobre o suicídio, em parceria com o Ministério da Saúde.
Sua iniciativa é mais do que louvável, atuando na contramão da perigosa indiferença que nos ameaça com o silêncio cotidiano sobre essa e tantas outras questões inadiáveis.
Se hoje a regra única é o gozo (o consumo), somos mergulhados numa indiferença que acaba por validar a banalidade do mal, uma vez que nosso horizonte reduz-se à meta da saciedade.
"Matar-se é coisa banal/Pode-se conversar com a lavadeira sobre isso/Discutir com um amigo os prós e os contras", é o que nos diz Brecht em sua "Epístola sobre o suicídio". Hoje, em sites na Internet, oferece-se a quem estiver interessado em se matar as instruções necessárias, as diferentes maneiras de obter os efeitos desejados, um verdadeiro "centro de valorização da morte", como podemos constatar em suicidio.com, reportagem de Eliana Brum (Revista Época, 2008).
Essa dimensão perturbadora da contemporaneidade parece atravessar a cena inicial da peça de Fernando Lobo. Numa espécie de prólogo, há uma projeção de imagens sobre o quadrado branco inscrito no centro da arena onde acontece a encenação: um grande olho se abre e, simultaneamente, multiplica-se uma rede de vozes em sonoridades de idiomas diversos; aos poucos vamos distinguindo pedaços de frases, inflexões variadas, protestos, ordens, lamentos, gemidos, fonemas, fórmulas que se repetem sob a fixidez inabalável desse olho que tudo vê. A cena se dá num palco mergulhado em quase-escuridão e parece instalar, pela sobreposição desse olhar eternamente vigilante e a insistência automática das vozes, uma corrente de expectativa sobre a complexidade do tema que nos dispomos a enfrentar. Estão abertos, pois, os trabalhos. Lá vamos nós...
A cena seguinte, no entanto, quebrará essa disponibilidade da platéia. Após a entrada dos quatro atores − Fernanda Avelar, Tuca Moraes, Françoise Berlanger e o próprio Luís Fernando Lobo − inicia-se a narração dos casos relatados por Marx/Peuchet.
O volume de voz da narradora do primeiro caso parece desproporcional ao espaço em que estamos instalados, mas é, justamente, a inflexão de sua voz que, num só golpe, desfaz em poucos segundos a disposição da recepção anteriormente descrita. A enunciação da atriz indica imediatamente ao espectador, o lugar de uma certeza, que não parece dialetizável − lugar que designa "a porta voz dos injustiçados personagens suicidas" − ela, a própria narradora − e remete, sem hesitação, e no mesmo ato, os espectadores, a platéia, a um lugar que é também previamente marcado: o de "sociedade repressora".
A delimitação desses "lugares" não se dá como jogo cênico entre palco e platéia; não se dá como colocação de funções provisórias, intercambiáveis − o que poderia − quem sabe? − produzir uma dinâmica interessante entre o espectador e a cena. A rigidez dessa inflexão parece coagular implacavelmente os fluxos de sentidos que poderiam fertilizar a cena, e contamina todo o espetáculo.
Semelhante à certeza suicida, que finda por fixar o sujeito a um significante não dialetizável, que o condena a morte, penso que a Cia. de Ensaio Aberto não se permitir desdobrar as questões suscitadas pelo texto, cristalizando um suposto "significado" que reduz a complexidade de uma questão como o suicídio à dualidade opressor/oprimido, vítima/algoz.
As regras de atuação sugeridas por Brecth sublinham a ‘’estranheza’’ no ato aparentemente banal; é preciso, sim, trazer o cotidiano para um âmbito que ultrapasse a evidência; isso não significa que se renuncie à empatia do espectador. Se é isso o que nos diz Brecht, nos seus Estudos sobre Teatro, muita confusão resta a ser desfeita − ou talvez refeita! − em torno do seu famosíssimo conceito de "distanciamento". No caso desse espetáculo , uma utilização equivocada do recurso, gera o efeito contrário: a adesão sem fissuras entre o narrador(a) e a narrativa, a designação peremptória dos "lugares" do emissor e do receptor da cena impedem que uma escuta crítica se dê: não há brechas, ambiguidades, indeterminações que solicitem o espectador; de fato, essa voz não se dirige a ele. Assim, a platéia antes interessada, passa daí em diante a − educadamente − "suportar a cena".
A entrada de uma segunda atriz, ilustrará, por assim dizer, o relato. Assistimos, então, a figuração do suicídio de uma jovem e, embora a modulação produzida na cena pelos diferentes traços, corpos, timbres das atrizes movimentem a nossa atenção, não se produzem novas interrogações ou alguma variação significativa no tônus afetivo da recepção.
Assistimos, apáticos, ao "suicídio" da jovem vítima do massacre familiar: acendem-se as luzes laterais de uma escada, num dos pontos cardeais da cena, e a atriz encaminha-se em direção a essa luz. Eis o afogamento no Sena.
O século XIX em Paris foi palco histórico onde uma nova personagem faz sua aparição: a’’Mulher Nervosa’’, deslocada em relação ao único papel a ela reservados pelos dicursos vigentes- o de Mãe, Rainha do Lar.Segundo Foulcaut, esse é um momento em que se acirra a produção dos discursos que pretendem fixar uma verdade sobre a ‘’natureza feminina’’, e o controle de seus excessos . A literatura ,e o teatro multiplicam as imagens que darão suporte à construção das máscaras/personagens com as quais as mulheres ensaiam e tentam construir novas formas de subjetivação.Não é a toa que Madame Bovary é publicado na França em 1856.
"Sobre o Suicídio" acerta no recorte do tema − o suicídio de mulheres no século XIX e, em certos momentos chega a produzir indícios ou esboços de uma cena que poderia ousar mais, sem prescindir do rigor e da delicadeza. As cenas da atriz Françoise Berlanger apontam nessa direção. Os fragmentos de canção utilizados pela atriz, algo na leveza e no desamparo de sua movimentação, o uso do olhar e da voz reinjetam alguma voltagem poética na cena. À ausência de voz das suicidas, opõe-se o grito da atriz.
A luz, as interferências da trilha sonora, a movimentação cênica, os figurinos são corretos, funcionais. Talvez corretos demais, essa é a questão. Não é possível tratar-se de um tema tão perturbador, sem que se corra, ao encenar, algum risco. Luís Fernando Lobo parece excessivamente reverente a Marx´/Peuchet, e, sem explorar as ressonâncias que o livro provoca, permite-se apenas, como encenador, o que poderia ser tomado como "um breve comentário à margem do texto": as bonecas, signos recorrentes, ora na palidez, no ar de boneca antiga de uma atriz, ora no objeto-esquife que carrega com uma boneca dentro d'água, ou ainda na chuva de pequenas bonequinhas de pano que marcam a pulsação cruel das estatísticas sobre suicídio atuais.
Marx, não esgotou o assunto.
Menos de cinquenta anos depois, essas mulheres encontrarão a escuta de Freud e, com ele, inventarão a Psicanálise.
Annabel Albernaz