A Filha do Teatro
Crítica Teatral
Por: Marcelo Atahualpa
Encenada pela cia do Teatro do Pequeno Gesto e sob direção de Antônio Guedes, texto Luis Augusto dos Reis e dramaturgismo de Fátima Saadi, a peça “A Filha do Teatro”, é executada com notável clareza e aparente simplicidade. Três atrizes narram a trama da peça e dividem entre si os depoimentos de três personagens afetadas pelo assassinato de uma diretora de teatro. As personagens expõem perspectivas distintas sobre o mesmo acontecimento, bem como as conseqüências de tal fato em suas vidas. Existem ainda outras personagens periféricas que são citadas e interferem na trama, mas não ganham voz.
A obra explora com maestria zonas fronteiriças do fenômeno teatral. E diversos aspectos que poderiam servir de entrave à compreensão do público são superados de maneira nada forçada, nem forçosa. Os supostos entraves à recepção poderiam ser inúmeros. A começar por uma dramaturgia onde os nomes das três personagens principais não estão dados, um modo de narrar com pouco ou nenhum envolvimento emotivo, um jogo sutil de personificação residual e rotativa, bem como uma cenografia que pouco ilustra a trama, mas que sugere jogos múltiplos de metalinguagem.
E apesar de tais características pouco ou nada confortáveis a quem deseja uma recepção fácil e óbvia, tudo parece extremamente claro. Ao espectador comum é dada a chance de entender, torcer e se comover com a história contada. Isso porque A Filha do Teatro é uma obra que vence o próprio complexo emaranhado teórico por meio de uma estética nítida, mas não rasa. As atrizes narram a história de maneira alternada, simultânea ou entrecortada. E o fazem de maneira muito franca. Onde poderia haver falsidades e excessos melodramáticos, existem apenas vozes extremamente audíveis ( não gritadas ) e olhares penetrantes, envolventes, e repito, francos.
O espaço da encenação é uma sala retangular onde nos dois extremos mais distantes então duas arquibancadas de platéia. Entre cada platéia e o centro do retângulo foram colocadas 3 molduras de tamanhos decrescentes. Assim, de cada platéia ao centro do retângulo, tem-se uma perspectiva. Na moldura central há um pano semitransparente (voal) onde são projetadas imagens hora gravadas, hora captadas ao vivo por uma câmera que está em cena e é manuseada pelas atrizes. Cada lado de platéia vê no outro lado o avesso da própria perspectiva. O que sintetiza magnificamente a idéia de perspectivas distintas para um mesmo acontecimento. As imagens projetadas possuem variadas funções. Algumas delas fazem alusão poética e ambientam o momento da narrativa, outras amplificam pequenos aspectos da cena (como um texto lido ou pequenas expressões de uma face) e outras parecem estar ali aleatoriamente ( mas não à revelia ) para que livres associações sejam feitas pelo público. Em alguns momentos a projeção joga com a noção de presença e de realidade.
Pois o que pode ser chamado de presente ou real quando estamos diante de uma obra onde as personagens contam o que já aconteceu, as atrizes representam personagens de maneira não representativa e onde o vídeo às vezes se mostra mais intenso e capaz de produzir emoção estética do que as atrizes à sua frente? Não se trata aqui de um vídeo que “roube a cena das atrizes” ou de atrizes que não são suficientemente fortes para se fazerem notar mais que o vídeo. Trata-se de uma estética cuja amplitude permite ao espectador escolher onde depositará seu foco maior de atenção, mas não há competição entre os elementos da cena.
Não sei até que ponto uma crítica de teatro inteiramente elogiosa pode ter validade para a discussão artística. Então dou espaço aqui a apenas dois pontos passíveis de problematização. O primeiro ponto diz respeito ao tempo de saturação ao qual fica exposto o espectador. Eu não desgosto da linguagem límpida, polida e quase neutra dada ao tom das narrações. No entanto, senti falta de momentos estratégicos para certo alívio de tanta constância de tons. Em dado momento, por exemplo, no dia em que assisti (14/05/09), ouviu-se uma sonoplastia de tiro seguida de um “Asta La Vista, Baby”. Achei aquilo perfeito! Genial ! Um momento tão carregado de tensão e tão sumariamente esvaziado dela só serviria de renovação das atenções, além de evidenciar com um drama seguido de paródia o que a contemporaneidade não se cansa de evidenciar: estamos diante de uma obra. Entretanto, só depois descobri... o “Asta La Vista” não era da peça. Foi um celular que tocou. Na hora errada. Mas não é que poderia ser ali a hora certa?
O segundo ponto diz respeito também a interferências. Cada atriz possuía um microfone pequeno e imperceptível acoplado ao corpo de maneira que, estando de frente para uma das platéias sua voz saía em caixas de som próximas ao outro extremo da sala. De repente, uma interferência, um problema técnico, um arranhado irritante e o texto seguiu sendo proferido como se nada estivesse acontecendo. Nesse instante específico a linguagem da obra não se tornou para mim crível. Pois, se estamos diante de atrizes que francamente contam uma história, se não há aí um esforço de personificação e identificação fixa entre personagem e atriz, se a luz e o som são operados em cena pelas próprias atrizes, se o que serve de assento a uma delas é um cubo contendo a maquete do próprio cenário, ou seja, se tudo é feito de acordo com uma estética onde os artifícios estão revelados, por tudo isso, me pergunto: Não poderia a atriz ter interrompido dignamente a apresentação, resolvido a falha técnica e depois seguido com toda a franqueza que a acompanhara até então?
A necessidade real de alívios estratégicos ao espectador e uma disposição maior para lidar sem embaraços com problemas técnicos, pontos de ressalva que existem, mas não comprometem A Filha do Teatro em seu todo. Uma obra que se propõe explorar limites do teatro sem cair em histrionismos vazios. Uma obra responsável e comedida feita por uma excelente equipe de profissionais que sabem o que estão investigando e literalmente sabem o que estão fazendo.
Obs: A peça esteve em cartaz de 16 de abril a 17 de maio de 2009 ( qui a dom às 19:30) na Galeria 2 do Caixa Cultural – Centro. Rio de Janeiro .
terça-feira, 19 de maio de 2009
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