domingo, 10 de maio de 2009

Sobre a opressão.


A partir do ensaio de 1846, “Sobre o Suicídio”, de Karl Marx, Luiz Fernando Lobo dirige a montagem da Cia. Ensaio Aberto, em cartaz no Espaço Sesc no mês de abril de 2009, em uma co-produção com a companhia belga “La Cerishe”.
Marx, em seu ensaio, cita os relatos de Jacques Peuchet, diretor dos arquivos de polícia de Paris durante o período da Restauração, e curiosamente, um monarquista. Mas já em Peuchet, o suicídio é pensado como sintoma de um meio social doente; seria um ato desesperado de fuga de uma estrutura social opressora, que transforma a existência individual em suplício. Marx usa então o teor de crítica social desses relatos para trabalhar seu próprio discurso. É digno de nota o recorte que Marx faz das memórias de Peuchet: na maioria dos casos, as vítimas são mulheres imoladas pelo patriarcalismo.
Este recorte se mantém na encenação de Luiz Fernando Lobo, que relata suicídios femininos em situações de suposta perda de virgindade antes do casamento, de marido que trata a mulher como propriedade, de abuso sexual familiar e decorrente gravidez indesejada, entre outras, sendo citado apenas um caso de suicídio masculino numa situação de desemprego.
Lobo mantém no texto encenado tanto a narrativa descritiva dos casos, característica do relato, bem como o teor político na abordagem do tema. O texto de Peuchet tem inspiração romântica, e é dado a arroubos sentimentais, o que Marx não suprime, nem Lobo; o diretor opta porém por contrapor ao texto proposições de encenação e atuação que distanciam o espectador de uma leitura emocional -o que é coerente com a história e orientação política da Cia.-, gerando um fato cênico específico.
A peça começa com uma projeção de vídeo, de Batman Zavareze e Fábio Ghivelder, em formato circular, no centro da arena do teatro. O vídeo introduz o assunto, e aponta para o caráter contemporâneo e planetário de alcance do tema. Para além destas imagens, a cena é predominantemente limpa, e se mantém desta forma durante a encenação. A iluminação de Jeff Dubois contribui para esta limpeza, criando formas geométricas no espaço cênico.
Entram em cena os atores, e todos – o próprio Lobo, Tuca Moraes, Fernanda Avelar e a atriz belga Françoise Berlanger – compartilham o texto, fragmentado-o, revezando-se na narração, esvaziando qualquer noção de personagem. Os quatro usam microfones de cabeça ou lapela, e surpreendentemente, somam a isto uma emissão de voz em volume bastante alto. Ainda, há no tom e no andamento das falas um proposital ritmo antinaturalista, comum a todos, apontando para uma opção da direção por enunciar o texto ao invés de interpretá-lo. De forma análoga à fala, os corpos não se mostram como individualidades: todos os atores se comportam de maneira parecida, objetiva, em deslocamentos retos, secos. Há, portanto, um pensamento coral, a proposição de um corpo e de uma voz comuns. Estes recursos cumprem a função de impedir a acomodação da platéia no conforto que poderia ser compartilhar daqueles casos suicidas sofrendo com eles.
Ao mesmo tempo, outro efeito é provocado ao longo da encenação: a grande massa sonora das palavras, emitida o tempo todo em volume alto demais e em ritmo constante, somada à postura de denúncia indignada por parte dos atores, acaba por os transformar cenicamente em porta-vozes hieráticos de um saber que deve ser imposto aos espectadores. Não há, em nenhum momento, qualquer dúvida por parte dos atores, eles estão blindados na segurança da certeza do que têm a ensinar. No seu conjunto de características físicas e no seu caráter de mensagem vinda de lugar privilegiado em relação àqueles que a recebem, a emissão resulta opaca, impermeável, agressiva. Curiosamente, a cena pensada como instrumento de crítica social utiliza na prática um registro discursivo comum à sociedade que ela quer criticar: a palavra opressora daquele que pensa saber mais do que aquele que ouve.
Estes procedimentos cênicos evidenciam o quê, de forma temática, norteia o espetáculo: a leitura única da causa de qualquer suicídio como sintoma social, e a consequente denúncia da necessidade de transformação da sociedade doente. E esta concepção é apresentada ao espectador como via única de possibilidade de entendimento da questão, e se mostra presente em todos os caminhos da encenação.
Os poucos objetos cênicos são em sua maioria bonecos. Uma boneca nua é apresentada imersa em um aquário, em referência aos suicídios por afogamento. Ao final, vários bonecos de pano são espalhados pelo espaço cênico, representando o grande número de suicídios que hoje acontecem por minuto no mundo. Novamente, um reforço à concepção do homem como uma marionete das convenções sociais, feito de forma literal, ilustrativa.
Quase ao final, há um longo vídeo de entrevistas sobre o aborto -mencionado em um dos casos no texto-, que permite ao espectador receber fisicamente de forma menos impositiva o que é veiculado. Mas ao interpretar que mulheres se sujeitem a fazer abortos exclusivamente por pressões sociais, a edição torna a tentar conduzir a recepção a uma única possibilidade de leitura da questão.
O tema do suicídio é vasto e ignora barreiras de civilização, cultura, sexo, faixa etária ou classe social. O suicida pode ser influenciado por inúmeros fatores: sociais, psicológicos, psiquiátricos, ambientais, familiares, culturais, genéticos. Ao tratar o assunto de forma redutora – sem levantar sequer as diferenças históricas dos relatos de Peuchet e Marx, e suas possíveis leituras sociais atuais -, a encenação acaba por não enfrentar de fato uma discussão política. O reconhecimento das diferenças é, por excelência o terreno do político. Nesta montagem, o político cede terreno ao ideológico.





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