Como representar um mito? Como atualizá-lo?
E um mito do peso e força de Don Juan, já amplamente explorado pela dramaturgia, literatura e cinema? Como trazê-lo à tona colocando suas questões de infidelidade, hedonismo, paixão, luxúria com um olhar que busca entendê-lo dentro dessa múltipla faceta? Como trazê-lo sob um olhar de julgamento? Ou sob um prisma que pretende compreendê-lo dentro de sua porção mais humana? É certo que são várias as possibilidades de dar a ver esse mito/homem/personagem na cena. Na montagem dirigida por Thierry Trémouroux e Cia D., em cartaz na Sala Multiuso do SESC Copacabana, o que vemos é um recorte do que pode vir a ser o mito Don Juan em suas mais diversas possibilidades de ser, sugerindo um ser multifacetado, inquieto e transgressor em certa medida.
A encenação partiu basicamente do texto de Molière, fragmentando-o em várias camadas nas quais são inseridos os textos sobre o mesmo personagem de outros autores: Don Giovanni de José Saramago, que mostra um Don Juan mais irônico e debochado diante de suas conquistas amorosas; Don Juan narrado por si mesmo de Peter Handke, texto em prosa cujo personagem se mostra como uma espécie de potência da natureza que dói por ser o que é não podendo escapar do seu destino de sedução e luxúria; o filme O olho do diabo de Ingmar Bergman, trazendo o personagem dentro da dor de ser julgado e condenado por seus atos; assim como outras referências (notícias de jornal, por exemplo) que podemos ver em cena nas inserções que pontuam toda a releitura que atores e diretor propuseram nessa montagem de Don Juan, DJ simplesmente.
Através dessa escolha pela fragmentação de um texto previamente dado e já amplamente encenado, o Don Juan de Molière torna-se uma espécie de “hipertexto” no sentido de ser um guia/roteiro da história que vai ser contada e entrecortada pelas referências acima citadas. O que se vê é uma explosão dos vários textos, numa escritura cênica própria que se faz no acontecimento teatral do aqui e agora. São as múltiplas possibilidades da condição humana do mito Don Juan em jogo que essa cena pretende mostrar e discutir.
A presente encenação se caracteriza, penso, pela alegria de contar aquela história num clima de euforia. Assim que o público entra no teatro, o clima de festa se instala, tanto pela bela cenografia, que lembra um cabaré com luzes vermelhas que dão o tom da paixão, da noite e consequentemente da transgressão que o personagem título carrega consigo, assim como pela postura dos atores ao receber o espectador de forma descontraída, buscando uma intimidade para que todos se tornem, penso eu, cúmplices daquela história que vai ser contada. Os atores brincam entre si, dialogam com a plateia (inclusive orientando-a na sua acomodação no espaço cênico), fazem mágica, mímica, arrumam os seus figurinos e adereços cênicos sempre num tom jocoso e lúdico que permanecerá no clima inteiro da peça. Nesse movimento, podemos logo perceber o tipo de atuação que tomará corpo pelo discurso dos atores e direção. A infidelidade ao texto de Molière (proposta declaradamente pelo projeto), assim como o fato de a infidelidade do próprio personagem ser basicamente o tema, a infidelidade a uma noção de teatro em que se deve construir personagens bem acabados, onde o virtuosismo do ator é fator crucial, se dá por meio de uma atuação livre de fórmulas e formas para os personagens. O que importa é o jogo entre eles e platéia, é a brincadeira que deve ser estabelecida naquele determinado tempo e espaço, trazendo à tona a deliciosa idéia de que o lugar do teatro é o lugar do lúdico, da diversão.
A diversão de que falo não é o simples riso pelo riso, mas sim aquele riso que é construído no momento da encenação através do fato de que aqueles atores estão falando de algo que lhes toca que lhes é caro, porém de forma descontraída, sem uma seriedade severa com relação ao tema e ao peso de encenar um clássico. De forma extremamente brincada, muitas vezes debochada e irônica, o que está em questão é algo sério, mesmo que se mostre por meio de risos. É uma postura clara na presente encenação, é uma escolha e acredito que seja fiel àquele grupo de jovens atores. Como a brincadeira e a falta de “respeito” ao texto é levada ao extremo (até no sentido de os atores estarem o tempo inteiro colocando em questão o próprio processo de encenação, principalmente na relação ator e diretor) talvez as cenas em que se propõe uma tensão e densidade maior dos estados de alma daqueles atores em relação ao que discute o tema de Don Juan, tenham ficado superficiais, no sentido de não abarcar toda a dimensão moral e humana dos vários Don Juan de que partiram. Acredito que aprofundar essas questões em alguns momentos faria um contraponto interessante ao clima brincado da montagem, podendo aparecer as diversas nuances que compõe a relação homem e mulher. Uma espécie de mergulho mais profundo nas dores que o amor, a infidelidade, o prazer e a vingança trazem ao ser humano, por ser demasiado humano, ser Don Juan, ser Dona Elvira, ser Leporello, o criado que tem que se submeter às leis de um patrão para sobreviver, mesmo que reprovando todos seus atos.
Acredito que esse aprofundamento residiria na atuação basicamente. E que encontrar o lugar da dor daqueles personagens em confronto com o clima descontraído e leve da peça, não seja tarefa fácil para atores e direção. Seria preciso fazer quebras bruscas de estado físico e emocional, mostrando aí a beleza da condição humana naqueles sentimentos que oscilam e garantem um discurso que fala diretamente para a plateia e com a plateia. Esse caminho na atuação me parece melhor executado por Thierry, Carolina Ivancevic e Suzana Nascimento, que dão mais nuances aos personagens que “tomam para si”, assim como estabelecem uma relação menos tímida com o público.
É interessante perceber que há uma intenção de unidade nessa encenação dentro dos propósitos de que parte. Luz, cenário, figurinos, projeções, músicas buscam uma harmonia com a fragmentação da proposta cênica engendrada pela Cia. D e pela direção. É nítida essa procura dentro dessa visão de jogo, que é exacerbada pelo fato de que o chão é revestido por um tapete que lembra um tabuleiro de xadrez. Embora o uso desses dispositivos em vários momentos não se concretize efetivamente, podemos captar a sugestão e isso me parece um ponto positivo.
Mas o mérito dessa montagem, a meu ver, é o risco que correm ao fragmentar o texto,assim como o risco da exposição a que se submetem dentro do registro de atuação escolhido que procura um diálogo com a platéia, deixando-a à vontade dentro daquele jogo caótico de cenas entrecortadas de sons e profusão de imagens.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
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