terça-feira, 23 de junho de 2009
Onde o menos é o que importa!
É justamente nesse ponto que o espetáculo em cartaz no Teatro do Jóquei inicia. A versão teatral do romance feita por Morten Kirkskov e traduzida por Liane Lazoski, transforma o livro em um monólogo, onde Meusault é o narrador de sua própria história. E como é narrar a sua própria história sem tomar partido? Para a personagem em questão é até fácil, ela está a margem das suas próprias emoções, ele não se deixa envolver, não é um homem frio, ele simplesmente não se importa. O que vale é o prazer do corpo naquele momento. Ele nos conta que é o dia do enterro da mãe, ele vai até uma cidade perto de Argel para enterrá-la, volta, vai ao cinema com a namorada, encontra um amigo, e vai pausadamente nos contando o seu dia, enquanto se veste. E quando descobrimos o porque deste homem estar se vestindo lentamente e nos contando a sua trajetória de vida até então é que temos uma revelação que faz mudarmos totalmente a nossa concepção sobre o que estamos assistindo.
Albert Camus nos pega uma peça, acaba mexendo em nossas emoções, transformando uma personagem que seria condenada por todo nós em vítima. Não uma vitima real, mas uma vitima da sociedade que marginaliza o diferente e isso faz com que sintamos pena e simpatia por Meusault.
É incrível como toda a montagem faz jus ao texto, a direção de Vera Holts é precisa, bem cuidada, pensada nos mínimos detalhes, cada fala, cada gesto tem uma intenção própria. Guilherme Leme está brilhante, conseguindo captar o espírito de um homem indiferente ao mundo. Sua narração/interpretação é perfeita, conseguindo o distanciamento necessário para que entendemos o que está se passando e ao mesmo tempo fazendo que todos caiam na arapuca de Camus e fazendo com que todos sintam piedade desse “estrangeiro”.
O figurino de Guilherme Leme e Vera Holts e o cenário de Aurora dos Campos são econômicos e não poderiam ser diferentes. Ali está o necessário, não imprimem uma marca, nem um estilo, é o básico, assim como a personagem. Vemos em cena uma cadeira e um terno, que Guilherme vai vestindo até chegar ao ápice do espetáculo. A luz de Maneco Quinderé é um pouco mais elaborada, mas sem grandes firulas, mais um acerto da produção.
Um espetáculo limpo, honesto, onde o menos só soma e faz com que a mensagem de Camus esteja presente no palco.
segunda-feira, 22 de junho de 2009
In On It
A Dramaturgia desenvolve-se em duas camadas distintas de ficção e os dois atores que estão em cena perpassam por tais camadas. Num plano ficcional temos a história de um pai de família que descobre ser portador de uma doença incurável. Vemos esse homem numa tentativa sempre frustrada de compartilhar esta angústia com os seus comuns. Do médico ao filho, passando por sua esposa, seu velho pai e pelo filho de um homem que tem um caso com sua esposa, os encontros são sempre marcados por um ar de solidão, incomunicabilidade e impossibilidade de compartilhamento da ansiedade que há em se saber que vai morrer. No outro plano ficcional estão dois artistas, um ator bailarino e um diretor e autor de teatro que vão tecendo comentários sobre o primeiro plano. Este autor é quem cria a dramaturgia do primeiro plano enquanto recebe críticas recheadas de pessoalidade do ator bailarino que é também seu ex-namorado. Este ator percebe os lugares-comuns do autor e trata de desmistificar o modo de sua escrita e também seus modos cotidianos. E é aí que se encontra a chave de boa parte do jogo metalingüístico presente na peça. Jogo que sugere o próprio momento presente da manifestação teatral onde críticas e atitudes ficcionais se confundem com críticas e atitudes de ator para ator no momento mesmo da peça.
Materialmente, a mise-in-cene recorre a um reduzido conjunto de recursos utilizados de maneira a sugerir muito. Duas cadeiras, um casaco, dois copos de água, cigarros, um isqueiro, uma iluminação e uma sonoplastia impecáveis e dois atores vestindo camisa social e gravata. Desses elementos apenas é que surgirão todas as cenas onde a significação de tais objetos é móvel. Beber água, por exemplo, pode ser uma atitude de qualquer um dos dois planos ficcionais e pode também significar apenas que os atores têm sede porque falaram muito e precisam hidratar as cordas vocais. O casaco é o elemento de maior relevância na transição entre planos ficcionais e na troca de personagens entre os atores, ele é uma peça de roupa importante e característica do ator bailarino e aparece no texto de seu ex-namorado como uma reminiscência da relação dos dois. Outros traços surgidos nesse “texto de dentro do texto” irão sugerir reminiscências entre a vida do autor e sua obra.
A fragilidade da vida e das relações humanas enquanto tema ficcional e a relação também frágil das significações atribuídas a personagens e objetos no próprio fazer da cena: esses são os dois elementos mais essenciais da obra. Há também momentos curtos de interação com o público, requisitado a emitir opinião sobre uma cena ou mesmo para dar um nome a um personagem. Participação, contudo, limitada. Há que se deixar aqui claro ao público sedento de novas linguagens o seguinte paradoxo: mesmo a fuga do hermetismo e das formalidades teatrais pode incorrer em novos hermetismos e formalidades. Quem olhar “In On It” com desejo ávido de encontrar uma obra pouco convencional pode não se dar conta da convencionalidade de uma obra extremamente dependente de recursos técnicos e mesmo da caixa cênica para a criação de suas ambientações. A sonoplastia instaura muito marcantemente lugares da ficção, a iluminação também. E não há demérito nisso por si só. Apenas lanço nesse ponto o cuidado que devemos ter ao chamar de novo o que é, em verdade, reformulado. Também não há demérito em ser reformulado. Os menos atentos poderão dizer que “In On It” não trabalha a ilusão da cena porque o texto não é feito nos moldes de um “drama burguês”, linear, com personagens principais e coadjuvantes e etc. Mas o fenômeno da ilusão teatral está ali. E também não há demérito nisso.
É certo que há um direcionamento no sentido de brincar com as expectativas do público. A imprevisibilidade das personificações, personagens que ganham existência e nome no decorrer da cena, como é o caso de um velho que surge a partir de uma tremedeira na mão do ator. E também se foge a clichês em momentos em que atores falam ao telefone sem telefone e sem mímica barata, ou mesmo quando contracenam sem se olhar nos olhos e o fazem como se estivessem. Mas há que se entender nisso tudo, antes, um exercício de reformulação das convenções instauradoras da ilusão. A cena instaurada, a ilusão instaurada, desfeita e re-instaurada, por e a partir das interações entre os atores e um conjunto tal de recursos e elementos cênicos.
Maria Stuart - Imobilidade e movimento, aprisionamento e liberdade. Tensionamentos do trágico.
A montagem teatral de “Maria Stuart”, texto de Friedrich Shiller, tradução de Manuel Bandeira, direção Antonio Gilberto, tem por desafio maior a realização de uma obra extremamente verborrágica em tempos em que vivemos o império da imagem. Como propor nos dias atuais uma montagem de tão longa duração e tão marcantemente logocêntrica? A imensa massa textual é deglutida pelo público com relativa facilidade em virtude de um trabalho de esmerado empenho de compreensão da obra escrita por parte dos atores e também pela implementação de uma minuciosa limpeza gestual e visual da cena. A imensa gama de informações textuais contrasta-se com uma visualidade pouco ou nada apelativa.
A respeito da trama, diz Pedro Sussekind (preparador teórico junto com Roberto Machado) em texto anexado ao programa da peça, “Todo o enredo gira em torno de forças entre a condição sensível de aprisionamento e a dignidade moral”. Assim, vemos Maria Stuart (Julia Lemmertz), rainha da escócia capturada e enclausurada, aguardando a sentença a ser promulgada por sua prima e rainha da Inglaterra Elizabeth (Clarice Niskier). O fato de ambas serem lideres de Estado e mulheres em tempos de evidente dominação masculina, bem como o parentesco entre ambas, são os fatores que geram a expectativa de que Elizabeth se compadeça de Maria Stuart. Mas no caminho da esperança dessa absolvição encontra-se uma complexa teia de questões políticas. Elizabeth não pode se deixar compadecer facilmente porque assim daria prova a seus críticos de que, por ser mulher, não estaria apta a ser também governante por não saber tomar decisões firmes e livres de sentimentalismos. Daí uma composição coerentemente quase masculina de Clarice Niskier que transmite a perfeita imagem da rainha livre que, no entanto, é obrigada a sempre duvidar de seus impulsos e das opiniões de seus conselheiros. Daí sua rigidez de movimentos e sua impostação vocal quase sempre pausada e grave. Julia Lemmertz compõe também coerentemente uma Maria Stuart que oscila entre a ânsia de salvar-se através de uma absolvição que poderá ocorrer somente à custa de sua dignidade, pois se faz necessário calar sua revolta mais genuína a fim de conquistar um veredicto favorável de sua prima. Seus movimentos são sutis, e sua fragilidade reivindica sempre um estado máximo de exposição e privação a que um ser humano pode estar sujeito, um estado onde a sua capacidade retórica a favor da própria vida poderá ser abalada a qualquer momento por seus instintos mais básicos de reação à injustiça.
A privação dos impulsos, um caminhar sobre ovos para poder transitar entre conexões políticas da trama, são os elementos dramaturgicos que justificam a opção por uma direção de atores calcada numa atmosfera de contenção e controle gestual que se apresentam em oposição às extremas tensões internas das personagens. A relação cênica de economia gestual em face dos extremos movimentos do texto possibilita uma apreensão segura da trama por parte do público. A limpeza visual do cenário também.
Helio Eichbauer assina a Direção de Arte e a Cenografia. Marcelo Pies, o figurino. Tomás Ribas, a iluminação. No centro do palco encontra-se um enorme praticável retangular feito em degraus com placas de madeira aparentemente crua. A base, é claro, com área maior do que o topo. Este praticável servirá a momentos e locais diversos da ação, dependendo do posicionamento dos atores e da iluminação. Além deste praticável, a cenografia conta com um trono ( de Elizabeth ) e um baú ( com os pertences de Maria Stuart ), ambos também de madeira crua. A rotunda preta ao fundo cria ambientes distintos de acordo com a iluminação que se joga sobre ele. Seu cromatismo oscila unicamente entre o vermelho e o negro. Cores que estão também presentes nos figurinos dos atores, tais cores fazem menção tanto às cores do exército real inglês quanto possibilitam uma via metafórica de conexão com o sangue e a morte. A crueza das cores remetem ao ensejo romântico de busca pela essencialidade, pela naturalidade, pelo primitivismo, em detrimento do aprisionamento do indivíduo pelas linhas de força civilizatórias.
E é essa a essência trágica de Maria Stuart. Personagem que tenta sem sucesso agir de acordo com a razão, mas é traída por seu senso mais natural e básico de dignidade humana. E decorre daí paradoxalmente sua aniquilação e sua liberdade. Nas palavras de Shiller, como frisa Pedro Sussekind: “expulsos de toda fortificação que pode formar uma defesa física, atiramo-nos dentro da invencível fortaleza da nossa liberdade moral, e ganhamos uma segurança absoluta e infinita”.
“Pessoas” e Pessoa
O Teatro Estático de Pessoa acredita na “revelação de almas sem a ação”, num espaço onde pode se explorar e talvez revelar a alma humana através das palavras pronunciadas por atores, e não por uma ação, um conflito exterior ou “perfeito enredo”. A direção de Susanna Kruger busca imprimir e evocar o Teatro Estático de Fernando Pessoa. A interpretação dos atores é minimalista, dotada de poucas ou quase nenhuma ação física. É evidente a diferença dos caminhos escolhidos por cada ator para cada cena, podemos ver quatro “Salomés” completamente distintas em cada rodada do circuito. Podemos ver como cada ator se relaciona em sua particularidade com o que está dizendo. Vemos os múltiplos sentidos das palavras de Pessoa, na boca e alma dos atores e pessoas, Luiz André Alvim, Verônica Reis, Márcio Fonseca e Adriana Schneider.
A encenação é ousada, afinal ouvir e interpretar apenas um texto de Pessoa já é difícil. “Pessoas” leva a cena quatro peças apresentadas simultaneamente, o que produz uma espécie de costura musical, onde palavras ora se misturam, ora se interrompem. A musicalidade é interessante, mas impossibilita em vários momentos a compreensão da cena, levando a um afastamento afetivo do público.
Os cenários e figurinos de Ronald Teixeira e Leobruno Gama, são adequados à proposta cênica, conferem uma simplicidade a cena. Os figurinos têm um melhor resultado em relação ao cenário, que parece ainda não estar pronto. Há uma visível diferença de elaboração e acabamento de uma cena para outra, o cenário do “Marinheiro”, por exemplo, composto por um pano no chão, com um vestido fazendo uma alusão à um corpo, uma cadeira, e um único peixe estranhamente pendurado no fundo, contrasta gravemente com o cenário de “Salomé”, repleto de caixas, objetos, entre eles, garrafa com vinho, tigela com água, e até uma massa de pão, todos utilizados pelos atores durante a cena.
“Pessoas” não é a melhor é a peça do “Atores de Laura”, mas é uma importante encenação do grupo. A companhia conhecida por montagens com grande número de atores em cena, direção marcada, e uma estética plástica forte, dá lugar para uma encenação mais sutil, simples e ao mesmo tempo extremamente complexa e audaciosa.
POSTANDO PARA DIANA HERZOG
Quadros de Cinema no Teatro.
A encenação de Domingos Oliveira confere uma característica cinematográfica aos quadros, trocas de cena, movimentações dos atores, trilha sonora, iluminação, entre outros. Alguns bem sucedidos, outros não tão bem aproveitados. A iluminação de Russinho é mal elaborada, ao invés de verticalizar essa idéia dos quadros cinematográficos no teatro, podendo definir melhor os limites, escolhendo o que está na penumbra, no escuro e no foco, a luz confunde. Fica no meio do caminho, nem ilumina corretamente - em alguns momentos vemos atores em cena fora da luz – nem consegue acompanhar a idéia da encenação.
O elenco é numeroso, são vários personagens, há uma demanda intensa de movimentação, agilidade e tensão dos atores. Muitos porém, não conseguem corresponder, é gritante a diferença entre os atores. Alguns demonstram experiência e defendem o personagem com brilho, fazem com verdade e propriedade desenvolvendo uma empatia com o público como Michel Bercovitch e Paulo Giadini e outros parecem não saber ao certo o que fazer ou como sustentar a cena, o texto é jogado fora, o corpo aparece “jogado fora” como o texto. Talvez a irregularidade dos atores seja o maior problema da encenação, essa afirmação fica clara quando percebemos que o espetáculo caminha numa curva crescente, começa devagar, confuso e aos poucos vai acelerando, desenvolvendo uma relação e atenção com a platéia. Nesse mesmo início lento e apático é quando vemos as cenas com maior número de atores e personagens, e já o final, parte mais contundente termina com um ator em cena.
Os cenários e figurinos de Ronald Teixeira são bem simples e funcionais, o primeiro melhor do que o segundo. A opção pelo preto e branco nos objetos, adereços e tecidos fortalece o clima cinematográfico da encenação. A simplicidade do figurino é problemática em vários momentos, porque perde a teatralidade, parece roupa do próprio ator.
A temática da história é extremamente atual, e bem sucedida quando se propõe colocar em questão, o que e como vivemos hoje. Faz um recorte preciso e realista da condição em que se encontra a população carioca. Trabalhos como este são imprescindíveis nos dias atuais para evocar discussões e possibilitar transformações. No teatro do Sesc Copacabana podemos ver juntos, o encenador e cineasta Domingos Oliveira, apresentando talvez uma de suas obras mais políticas.
POSTANDO PARA DIANA HERZOG
Um Rock bem comportado
A direção de Felipe Vidal e Tato Consorti é conservadora demais o que acaba reduzindo as possibilidades cênicas e faz com que o ritmo da peça fique arrastado, principalmente na primeira metade do espetáculo. As marcações ficam claras e a movimentação na cena é bastante reduzida, o que traz mais ênfase ao texto que extremamente politizado e datado não é de fácil acesso a um público que não possua a priori as referencias citadas pelos atores.
O rock que seria o elo entre todos os elementos da peça aparece em telões para demarcar passagem de tempo e o público logo no início do primeiro ato percebe que também é um artifício utilizado para permitir a troca de cenários. E então essa música, que encarna tão bem um espírito revolucionário e transgressor dos personagens e da peça em si, se torna mero objeto figurativo. Um mini-clip para “passar o tempo”. E o dialógo entre a trilha sonora de Stoppard com grandes do jovem e rebelde rock’n’roll perde totalmente o dialogo com o que está em cena.
O cenário de Sergio Marimba que a princípio se apresenta como uma interessante possibilidade cênica dado a sua mobilidade acaba encarcerando os atores em dois blocos distintos (o jardim e a sala de estar em Cambridge e o quarto e a sala de Praga). O figurino de Nello Marrese flui bem com o cenário e consegue levar o público muito bem através da passagem no tempo.
Thiago Fragoso está bem no papel de Jan, mas seu envelhecimento em cena soa forçado dada sua vitalidade na interpretação. Gisele Fróes consegue dar vida muito bem a Eleonora, mas com Ismênia é que se destaca melhorando o ritmo da peça no segundo ato encarnando uma personagem, leve engraçada sem se tornar boba. Otavio Augusto, ator experiente é o fio condutor de toda a peça mostrando ao público toda a trajetória de idealismo e desilusões de Max, um personagem com “a idade da Revolução”.
Enfim, o espetáculo fala de liberdade, revolução e música mas faltou a encenação se arriscar um pouco mais, sair de um lugar comportado e encarar sem medo o espírito do bom e velho rock’n’roll.
domingo, 21 de junho de 2009
CLOWNSSICOS
É bem verdade que, como profissional de teatro e fazedor dessa difícil e cativante engenhoca de ilusões, por vezes considerei o papel do crítico e sua presença ameaçadora em alguns dos meus espetáculos quase um desrespeito a todo o meu empenho profissional. Com que direito uma pessoa representando um veículo de comunicação assiste ao meu espetáculo e fala dele o que bem entende aos seus leitores, sem saber pormenores do processo ou de todas as dificuldades que envolve esse “fazer teatral”?
É uma questão que abre uma gama de brechas para discussões, algumas mais fundamentadas que outras, e onde cada qual – profissionais de teatro e o crítico do jornal – detém muitos argumentos visando uma forma de qualificar a arte teatral produzida e aberta ao público. Claro que o crítico e seu trabalho são melhores “digeridos” por todos da peça criticada se a crítica é favorável, elogiosa. Porém, se a crítica “detonar” a peça, pobre crítico. Difícil refazer sua fama de “mau”.
Mas no caso da crítica feita por Barbara Heliodora em 04/05/09 sob o título 'Clownssicos': com apelação e deboche, Cia. do Giro apresenta um constrangedor espetáculo, fica difícil sair do teatro sem a tal fama de “mau”. Ou melhor, quase impossível. Porque a mesma companhia gaúcha que apresentou o comentado e belo espetáculo “Larvárias” no ano passado, este ano trouxe ao Rio de Janeiro, como a própria Barbara disse, “um dos piores e mais constrangedores espetáculos que testemunhei em minha longa carreira de espectadora”. E concordo com ela em sua definição “maldosa” sobre a peça, pois Clownssicos de fato desonra e desqualifica a inteligente e crítica arte do clown, além de desmoralizar irresponsavelmente com parte da história da dramaturgia ocidental e seus autores.
No espetáculo, o clown não passa de uma figura grotesca e levianamente debochada, rompendo com limites imperdoáveis para esta arte, como é visto no final, onde uma parte maior do elenco se desnuda ainda enquanto clowns e durante os agradecimentos. Ou seja, falta unidade até nisso. A tal nudez transgressora não é uma proposta comum a todos. Mas independente disso, qualquer estudioso mais dedicado ao tema sabe da gravidade de se desnudar um palhaço em cena, um clown. E a Cia. do Giro faz isso acreditando estar reinventando a roda no teatro. Lamentável.
E tão lamentável quanto isso é ver investimentos em cenários e figurinos em prol do nada. Tempo e dinheiro desperdiçados num projeto que aparentemente tinha muito para ser uma boa proposta. Ao menos a ideia inicial era boa, mesmo que um tanto quanto equivocada, de clowns frustrados por serem apenas palhaços conseguirem realizar o seu maior sonho: interpretar papéis dramáticos e/ou trágicos da dramaturgia universal e alcançar um maior respaldo profissional. Se o caminho escolhido não fosse o deboche raso, talvez eles tivessem chegado a um produto artístico de melhor qualidade e conteúdo.
Enfim, e com “maldades” à parte, Barbara e eu concordamos que deva haver maior responsabilidade nas produções teatrais, sobretudo nas de companhias como a Cia. do Giro, tida como companhias com processos baseados em pesquisas. Deve-se ter mais rigor na qualidade e na feitura desses espetáculos, sem perder a liberdade da criação artística, mas levando em consideração que há um público inteligente ou em processo de formação de platéias interessado em boas produções. Portanto, qualidade já e menos palhaçadas gratuitas.
"O Estrangeiro"
A atual adaptação para o teatro da primorosa obra de um dos maiores escritores da língua francesa do séc XX ,Albert Camus, dirigida por Vera Holtz e interpretada por Guilherme Leme é uma montagem bastante corajosa e audaciosa, e não poderia ser diferente pois, além de ter sido contemplada com o prêmio Nobel, foi considerada por Sartre como a “Ilustração da existência humana”.
A atmosfera do que está por vir é anunciada discretamente pela cenógrafa Aurora dos Campos e pelo iluminador Maneco Quinderé com os poucos elementos que já visualizamos em cena :Uma cadeira posicionada no centro de um quadrilátero igualmente isolado pela imensidão negra do material escolhido para recobrir o restante do palco. A luz fluorescente colocada imediatamente acima do foco central da cena é filtrada por uma placa de lisolene proporcional às medidas do piso ilhado - tudo se encontra simetricamente ordenado.
O monólogo se inicia no escuro total .Tais recursos utilizados servem tanto para conduzir o espectador até um estado apurado de percepção das eloqüentes palavras, como para transportar o ouvinte a uma escuridão angustiante e introdutória do universo individual e tão peculiar desse intrigante personagem literário. A platéia é mantida no breu por cerca de três minutos e utiliza unicamente seu mecanismo sensorial auditivo;atenta apenas ao que é pronunciado.
Aos poucos as luzes se acendem e à medida que o personagem ilustra seu mundo e apresenta os coadjuvantes de sua solitária história vou tomando consciência de que o universo criado para ilustrar a obra trilha um caminho coerente àquele solitário universo,meio absurdo, criado por Camus.
Esse personagem, apesar de ser fruto do contexto histórico de pós-guerra (momento propício à revisão,reconstrução e crítica ,que parte de uma classe pensadora, a mecanismos totalitários e decadentes utilizados como forma de controle e dominação social presentes nos campos estatal, político,moral e religioso) se mantém extremamente atual, pois suas ações não são justificadas como efeito de uma causa específica de um tempo ou local ; Meursault , personagem que aparentemente pode ser visto como apático e insensível,é na verdade uma criatura que não procura aprovação alheia;portanto não representa, é impossivelmente verdadeiro e cru em suas atitudes,é um assassino contraditoriamente desprovido de maldade,quase ingênuo.
A postura de indiferença e desapego do narrador em relação ao seu mundo e às pessoas com quem ele mantém algum vínculo é preservada na contida atuação de Guilherme Leme, e mesmo quando partes do texto original são sublimadas (na adapatação do dinamarquês Morten KirKov traduzida por Liane Lazoski) não se perde o tom crítico e sutil contido na obra aos meios utilizados como instrumento mantenedor de uma conduta padronizada que sirva de reconhecimento e garantia de auto-preservação para a sociedade.
O que pode parecer algo negativo no espetáculo - exigir atenção e concentração na narrativa e oferecer poucos mecanismos dinâmicos visuais de ação para a quebra da monotonia - é ,sem dúvida, uma escolha certeira e que contribui em vários aspectos para e leitura do todo minimalista: O ator se mantém ,na maior parte da peça,sentado em um banco e à medida que expõe os fatos acontecidos,vai se vestindo lentamente,sem demonstrar nenhuma indignação com a sentença dada e preste a ser executada. O cubo da cena serve como metáfora de seu isolamento não limitado apenas à sua condição de prisioneiro;ele é um homem sozinho em sua existência e seu tom monocórdio na narrativa resume sua indiferença a seu estado e à humanidade.
O “Estrangeiro” de Vera Holtz é um espetáculo despretensioso que pode agradar ao público que busca fidelidade na ilustração tridimensional de uma obra literária,mas ,em contrapartida, pode aborrecer e entediar àqueles mais sedentos de montagens audaciosas e inovadoras que explorem outras possibilidades e mecanismos de comunicação inerentes a essa manifestação artística tão peculiar que é o teatro.
anti-dinheiro grátis, uma crítica
Entretanto, a peça foi divulgada como “anti Dinheiro-grátis”, o que teoricamente não seria o oposto do Dinheiro-grátis, mas uma negação dele, como um duplo, um outro, ou o mesmo às avessas. Foi exatamente o que se pode ver. Antes do espetáculo se é oferecido a fumar no palco por alguma quantia em dinheiro, uma vez que no palco se pode fumar, na platéia não. Ao lado da cartola, um pouco mais a frente está um pote de água daqueles de cachorro e do outro lado o cinzeiro. Melamed está pela platéia pedindo dinheiro, quando pede para uma senhora uma moeda de um real e ela oferece um centavo; é quando Melamed toma o canto da cena, no fim das escadas que dão acesso e faz um discurso anti-um centavo alegando que um centavo não é dinheiro, é “baixo astral”, e nos faz (novamente) de um jeito ritualístico nos livrar das moedas, fazendo com que juntos as joguemos no palco, incluindo agora moedas de outro valor.
O espetáculo se inicia, no molde do dinheiro-grátis, numa simulação de um show de hip-hop, aos gritos de “vai tomar no cu, PAZ”, e mergulha numa reflexão sobre fatos básicos da vida, coisas que não dependem do dinheiro para a existência como “Matar ou morrer? Matar, vamos matar, sair na Graça Aranha degolando todo mundo. Morrer, vamos morrer, não vale a pena viver, vamos morrer.”
Enfim, há o correr de um texto que passeia entre o poético e o descontraído, o reflexivo e o humorístico até que culmina na parte em que seria a deixa para a entrada no fim do espetáculo, na parte do dinheiro-grátis. É quando Melamed pergunta: “Cadê os miseráveis daqui?” Todos gritam afirmativamente, daí ele diz: “E desde quando miseráveis vão ao teatro?” Todos caem no riso, inclusive eu, e ele manda: “Não é esse o teatro que eu quero fazer”. Na mesma hora, um outro tom toma o espetáculo, primeiro vindo da platéia que se sente culpada por ter rido. A partir daí Melamed volta com uma mesa, e sentado em forma de aula teórica, crônica, simpósio, faz um exercício de refletir sua própria obra e tentar observar a partir da trilogia qual o teatro que ele gostaria de fazer, qual teatro ele havia sonhado e qual ele havia conseguido e principalmente, qual o grau de satisfação que havia naquele teatro, enquanto que no fundo numa projeção passam trechos da primeira montagem, sem o anti. Num breve texto sobre o amor, num tom seco, Melamed chega a dizer: “o amor te come e arrota na tua cara.”
Pode-se dizer que Michel Melamed conseguiu amernizar o efeito ritualístico daquele final, conseguiu tirar algo que começa como uma forma de contestação mas que logo depois, como qualquer outra obra, é absorvida e transformada em carimbo, tatuagem e prende à obra tornando o próprio autor refém de si mesmo, pois o que acontece é que a queima do dinheiro se torna o elemento mais importante da obra, então mudar esse final para uma parte reflexiva é uma forma de burlar esse efeito.
Pouco depois, ele se levanta, agradece e sai. Grande parte da platéia não entende que é o fim, não consegue aplaudir, muita gente fica revoltada, pois espera de Melamed outra coisa, humor, charme, ironia, e é isso que ele tira da platéia que agora sente raiva. Algumas pessoas chegam a ameaçar querer pedir o dinheiro de volta, outros querem esperar para conversar com ele, mas no fim, se rendem pois a semente reflexiva já estava plantada. Passeando por blogs à procura de opiniões, encontrei duas: uma positiva e outra negativa, fazendo um bom contraponto para reflexão. Eis:http://amycouto.blogspot.com/2009/06/eu-nao-faco-silencio-porque-amo-tudo.html - http://futurosamores.blogspot.com/2009/06/eu-nunca-fiz-critica-de-teatro-mas.html
No fim, a impressão é positiva, mas a sensação não, pois a reflexão que chega num embate violento com a emoção é quase um estupro, é como uma flecha apontada para gente, mas que apesar de todos os sentimentos que sentimos, é absolutamente importante, e mais, é talvez essencial.
Rio de Janeiro – Uma cidade bipartida por seus teatros
A distribuição das salas de teatro cariocas reflete de forma clara a divisão sócio-economica da cidade. Enquanto a maioria se encontra na zona sul, temos somente 3 teatros de expressividade na zona norte (Ziembinski [que no momento se encontra em obras], Sesc Tijuca e Teatro Miguel Falabella [localizada no Norteshopping]) e mesmo assim o circuito de peças entre essas 2 grandes zonas da cidade raramente se encontram. A maioria das antigas salas culturais (de teatro e cinema) se encontram hoje tomadas pelas grandes igrejas evangélicas da cidade.
Há uma discussão no meio teatral sobre a importância da formação de público, no entanto as próprias companhias e produtoras teatrais muitas vezes se recusam a trazer suas peças pra essa parte da cidade. O resultado é que o teatro experimental, contemporâneo e engajado se fixa somente na zona sul e a maioria das peças se constitui em relação ao gosto dessa maioria abastada da cidade. O que chega a zona norte são peças de menor orçamento, besteiróis e peças quase exclusivamente comerciais – salvo raras exceções. O teatro forma opiniões e consciências e esse fato corrobora para aumentar cada vez mais as discrepâncias de pensamentos entre esses dois “Rios de Janeiro”.
Existe um projeto implantado pela prefeitura, as chamadas lonas culturais que surgiram como forma de atender essa demanda de público ‘sem-teatro’. No entanto o que era para ser uma resolução temporária acabou se mostrando permanente. O teatro, sendo cultura, também é uma forma de identidade de um grupo social. As tendas evidenciam o descaso das autoridades em relação àquelas comunidades. Porque somente a zona sul é capaz de ter seus próprios teatros, bem feitos, bem aparelhados com toda infra-estrutura necessária para uma peça de qualidade?
Além disso, existem também a dificuldade de transporte entre os teatros e a zona mais pobre da cidade (além dos horários dos espetáculos que restringe significativamente a oferta de meios de transporte público) e o preço dos espetáculos que é totalmente inacessível a essa camada da sociedade carioca. O público acaba não conhecendo e passando a não gostar de teatro. Os jovens acreditam que teatro é uma coisa chata e cara, quando muitas vezes nunca teve contato com essa manifestação cultural. Cria-se um “pré-conceito” extremamente perigoso junto a uma faixa etária que está em formação.
A zona norte quer e precisa de políticas públicas que mudem esse quadro imediatamente. No entanto sem um movimento de interesse artístico agindo paralelamente o problema não poderá ser resolvido. É necessário um teatro para dialogar com essa população pois a segmentação do publico teatral carioca ,ao contrário do que possa parecer para pessoas que não vivam essa realidade, não é uma questão de opção. E isso tem que ser transformado. O teatro surgiu como uma forma de agregar pessoas, desagregar (forçadamente) me parece ir contra ao caráter mais intimo dessa forma de arte.
A encenação de Na Solidão dos Campos de Algodão: entre acertos e desacertos
A montagem surge amparada por um blog, contendo em seu bojo, artigos sobre o encenador e sobre questões pertinentes ao entendimento da trama, elaborados pelos alunos-teóricos Alcemar Vieira, Daniela Amorim, Daniele Ávila, Marcio Freitas e Mariana Barcelos, além de depoimentos do diretor e dos demais alunos responsáveis: a cenografia de Bárbara Barbosa e Dolores Marques; o figurino de Regilan Deusamar; a iluminação de Luisa Paes e, finalmente, a música de Pedro Tie, cumprindo a função de articular todas as vozes participantes num corpus acadêmico bem estruturado, e principalmente, acessível, tanto para quem viu a peça, quanto, simplesmente, para quem tem interesse em aprofundar, de forma panorâmica, os conhecimentos sobre o dramaturgo francês. E foi consultando a página eletrônica da peça, que uma questão me chamou profundamente atenção.
Citando o aluno-diretor: “Minha formação artística foi pautada, desde o princípio, pela busca de uma expressão focada no corpo. Aos poucos fui percebendo que a palavra ficava presa na garganta e quando saia, não tinha o tratamento artístico necessário para compor, junto com o corpo, um todo harmonioso” (Rudáh: 2009). Vejamos: O registro vocal dos atores Carla Martins e Maelcio Moraes, ambos com característico sotaque nordestino, possuem o fôlego necessário para atender as necessidades de se falar um texto de longos e difíceis monólogos, como este de koltès, porém ficou aquém do nível sugerido pelas relações estabelecidas na ação dos personagens, pois a pulsão necessária que emerge da fala dos dois únicos protagonistas da trama, o Dealer e o Cliente, instaura nuances de arrogância e ambiguidade do desejo, enfraquecidos em cena por uma entonação mais lenta, não imprimindo uma força suficiente, do segundo personagem citado, que procura desestabilizar os argumentos do primeiro.
O autor estabelece na cena um ambiente de risco, onde a escuridão da noite é propícia às transações ilícitas. Não sabemos que lugar exatamente é aquele, porém, podemos supor, pelos enunciados das duas figuras, que, ali, paira no ar a sensação de total insegurança. Neste espaço ermo, o duelo verbal entre quem deseja e quem obtém o objeto do desejo é travado, sem que ambos cedam às pressões impostas pelos seus duplos: nem o Dealer apresenta o conteúdo de sua mercadoria, nem o Cliente nomeia o objeto do qual ele necessita. Mas o que torna este texto peculiar é que, em Na Solidão dos Campos de Algodão, o pensamento é levado às últimas consequências, e a necessidade que estes sujeitos têm de falar é flagrante, e eles falam muito. Cada representação da fala dos personagens é um imenso monólogo, possuidor de velocidade e ritmo próprios, que tem o poder de desestruturar toda fala antecedente. E aqui está o problema: a materialização vocal do Cliente de Maelcio não possui a força necessária para afrontar, replicar, humilhar o Dealer à altura, logo ele, que quer ignorar os acidentes do seu percurso e que despreza aqueles que atrapalham o seu caminho.
Devido a esta leitura, pressupõe-se que um tenha mais o domínio da situação que o outro, o que não é o caso. Ali, ambos possuem consciência de suas forças internas, devido à violência com que utilizam as palavras, devido ao modo como querem intimidar um ao outro, e isto teria que estar latente desde o inicio do espetáculo.
Mas, dentre os acertos do espetáculo, chamo atenção para dois elementos que preenchem o espaço de forma concreta, permitindo que o público capte toda atmosfera densa que paira naquele lugar indefinido: a cenografia, bem elaborada, feita de curvas e bifurcações que possibilita o desequilíbrio dos personagens, e a música, necessária para criação de zonas obscuras e sensações, penetrando em nosso espírito o medo que é estar ali, partilhando a companhia daqueles sujeitos.
A LENDA DO PRÍNCIPE QUE TINHA ROSTO
É louvável ver o resultado final dos desafios que algumas iniciativas teatrais propõem a elas mesmas. E este é o caso da Cia. Artesanal, uma das principais companhias cariocas de teatro dedicadas ao público infantil, em cartaz no Teatro do Jockey com sua nova peça A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto. Com suas últimas montagens priorizando o texto como ponto de referência, nesta nova peça o texto simplesmente some.
Um desafio que é bem realizado e que serve de amadurecimento estético para o grupo. É uma história simples e de fácil compreensão da platéia, quase um sonho com dramaturgia e roteiro musical de Gustavo Bicalho, conduzida apenas por algumas narrações gravadas e umas projeções que ilustram passagens da história num telão.
A atmosfera gótica presente nos cenários, figurinos e adereços de Fernanda Sabino, Henrique Gonçalves e Karlla de Luca é de uma preciosidade e requinte de detalhes inspirada nos filmes de Tim Burton. E os atores André Pimentel, Bruno Oliveira, Débora Salem e Virgínia Martins, completamente anônimos em seus impecáveis figurinos, abrem mão de seus egos ao não mostrar seus rostos sob máscaras e dão suas contribuições à peça com composições corporais de singular delicadeza gestual.
Talvez A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto seja uma história mais apropriada para a linguagem de teatro de marionetes, muito por conta de sua estética, mas tudo é feito com tanta verdade pelos atores que por vezes eles se desafiam em serem grandes marionetes humanas e, o melhor, vencem este desafio com toda a sua excelência.
Tudo isso tendo a música de Prokofiev, principalmente do ballet “Romeu e Julieta”, dando as variações ora dramática, ora apaixonada, necessária à narrativa da história; além da Luz de Jorginho de Carvalho, rica de elementos ao criar ainda mais esse universo de sonho, dando pinceladas de magia ao espetáculo, por vezes transformando-o num quadro de rara beleza e delicados matizes.
Enfim, A Lenda do Príncipe que Tinha Rosto é mesmo uma “proposta diferente para a Cia. Artesanal”, como seus próprios diretores-artísticos Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves declaram no programa da peça. E diferente também para o público de teatro infantil, que por vezes sofre com a mesmice das montagens que subestimam este público. Um espetáculo diferente no melhor sentido, principalmente na sua estética, e que vale ser assistido por todos.
DIÁRIO DE UM LOUCO
Além do tema Loucura, pauta cada vez mais evidente numa época onde a “normalidade” é discutida e questionada em vários segmentos da sociedade, a coincidência de algumas datas comemorativas está entre os principais motivos, segundo o programa da peça, para justificar a recente montagem de Diário de um Louco de Nicolai Gogol em cartaz na Sala Multiuso do SESC Copacabana. 2009 é o ano do bicentenário do próprio autor, Gogol – um dos maiores nomes da literatura eslava e considerado por muitos especialistas um dos precursores do realismo russo –, além de ser o ano de comemoração do centenário de nascimento do sergipano Arthur Bispo do Rosário, famoso paciente de um asilo psiquiátrico carioca e artista plástico consagrado nos circuitos internacionais das artes plásticas, falecido em 1989. Mas o maior dos motivos está na comemoração, também este ano, dos 40 anos de carreira do ator, diretor, autor, figurinista e cenógrafo Cláudio Tovar, protagonista desse espetáculo tem a direção de Alexandre Bordallo.
Diário de um Louco por Gogol conta a história de Auxence Ivanovitch, um homem desiludido com a sua condição de funcionário público e decepcionado com a influência que o poder tem no prestígio dos homens, e que fica perturbado e rompe com a linha que separa a loucura da razão, ao ponto de acreditar que é o rei da Espanha.
Nesta montagem, segundo o diretor Alexandre Bordallo, “a proposta não é discutir a loucura sob um enfoque patológico, e sim exaltar a genialidade artística que permeia a loucura criativa, producente, construtiva, além de celebrar os artistas condenados em suas buscas estéticas e filosóficas que muitas vezes foram ou são considerados loucos por isso”. E na peça, quase tudo contribui para atingir esse objetivo, quase tudo.
O cenário e ricos figurinos, quase todos à base de material sucateado e/ou reciclado, são do próprio Tovar e inspirados na estética das obras de Arthur Bispo do Rosário, contribuindo bem para a atmosfera da peça com a riqueza de detalhes do universo desses artistas quase sempre anônimos e considerados “loucos” por nossa sociedade. Porém, os adereços criados para representar várias personagens do conto durante a peça têm efeito apenas no início dela e logo caem no previsível depois da terceira inserção. Por serem pré-montados para uma montagem eficiente em cena, perdem sua magia nisso.
A iluminação de Aurélio de Simone é precária, muito por conta das limitações do próprio espaço, e a Trilha Sonora de Cláudio Lins cumpre bem as marcas do texto, sem maiores contribuições. Já a direção de Alexandre Bordallo tenta criar um tom intimista e confortável a toda loucura do personagem da peça, mas imprime algumas marcas mal digeridas e executadas pelo ator do espetáculo que muito comprometem a encenação, por vezes caindo num grotesco dispensável, como na cena de masturbação.
E como já dito antes, quase tudo remete à loucura neste espetáculo, faltando mesmo a loucura de Cláudio Tovar na composição do seu personagem. Com uma interpretação tensa e insegurança em vários trechos do texto, logo no início ele tenta uma cumplicidade descabida para seu personagem com a platéia. E assim vai até o final, azeitando sua composição a partir do meio em diante, mas sem atingir grandes trunfos cênicos. Ou seja, faltou apenas loucura ao Diário de um Louco.
A Filha Do Teatro.
O espetáculo em questão, encenado na Galeria 2 da Caixa Cultural na Graça Aranha, com direção de Antônio Guedes dramaturgia de Fátima Saadi e autoria de Luís Augusto Reis ,é uma narrativa construída a partir do ponto de vista de três personagens sobre um mesmo fato:o assassinato de uma diretora teatral .
As vidas dessas personagens inominadas (não sem um propósito) foram aproximadas diretamente pelo teatro no momento em que a encenadora contratou a atriz pornô grávida e seu parceiro para executarem em sua peça uma relação sexual. A criança,quase parida no palco numa das performances da mãe, assim que nasceu prematuramente,despertou na diretora um sentimento mesclado de piedade e proteção; tal afeição é facilmente compreendida se levarmos em consideração a tragicidade que já marcava o nascituro desde o ventre da mãe.
O enredo da peça da “Companhia do Pequeno Gesto” é interessante e fisga o ouvinte certeiramente,e a forma clara e objetiva adotada pela dramaturga na ilustração dos fatos no decorrer do tempo o deixa ainda melhor. As três intérpretes se posicionam diante da platéia com elegância, firmeza e se movimentam e gesticulam na exata medida ,sem exageros,contribuindo assim para que o foco do espectador se concentre tanto no concreto presente -ou seja, sala onde os fatos são contados pela “Companhia”-, quanto em seu próprio imaginário - no mundo interior do espectador - construtor de uma realidade paralela àquela oferecida por todos os aparatos cênicos, tanto literários narrativos como estéticos e plásticos .
O figurino, concebido por Mauro Leite, é tão pertinente a todo o contexto ilustrado na proposta que passa quase que despercebido diante dos demais elementos ,causando a ilusão de serem peças pertencentes aos guarda-roupas pessoal das atrizes. Consegue por fim atingir precisamente o objetivo da proposta criativa do grupo: o de não hierarquizar os elementos cênicos no seu grau de importância e relevância interpretativas. Tudo ali possui um lugar de destaque mas sem se destacar desigualmente dentro do todo e essa busca da equidade (geradora de infinitas interpretações) obviamente não foi um recurso utilizado sem se ter uma proposta previamente deliberada e calcada em estudos teóricos a respeito do teatro pós-dramático.
O cenário projetado por Doris Rollemberg é de uma beleza peculiar pois não só agrada aos olhos como também tem como objetivo dar margem a inúmeras leituras metalingüísticas ,seja por seus arcos que remetem a um tradicional palco italiano - símbolo de um acontecimento passado num palco fora dali - seja pelo seu espelhamento nas duas extremidades da sala (o que dá o efeito visual de “eco”, repetição) visto em concomitância à narração que é ,algumas vezes, executada quase que simultaneamente pelas duas atrizes situadas nas duas extremidades das arquibancadas (o que dá a impressão sonora do eco). Enfim, o cenário foi tão bem pensado que possibilita infinitas leituras em torno dele e do tema.
Esse é sem dúvida ,a meu ver, pelo conjunto da obra um dos melhores espetáculos que assisti em 2009 não só por dar ao espectador infinitos recursos interpretativos como também por proporcionar uma ampla leitura e discussão em torno da obra em si e do próprio fazer teatral de uma maneira mais ampla.
No Campus de Algodão
O figurino de Regilan Deusamar tem a eficiência de nos revelar de cada personagem um pouco daquilo que não é dito pelo texto. Como na grande capa que dealer carrega como um fardo ou uma cauda, nos fazendo lembrar os movimentos de um réptil.
Carla Martins, como o dealer e Maelcio Moraes, como o comprador, estão em perfeita sintonia com o caráter conflitante do texto, onde, cada um, tenta convencer o outro. Carla, com seu sotaque nordestino, encarna com muita presteza a força e a empáfia do vendedor,
enquanto Maelcio, surge como um selvagem, um quase primitivo, nos presenteando com uma tranquilidade e segurança compondo um personagem que cresce ao longo da peça.
Uma montagem que vale a pena, que precisa ser vista e ouvida mais de uma vez para que tenhamos tempo de degustar tantas proposições subjetivas e nos permitirmos a reflexão que este texto/tratado filosófico nos apresenta.
postando para Fernanda Oliveira
sábado, 20 de junho de 2009
A crítica teatral e sua função nos novos tempos, por Sebastião Milaré
sexta-feira, 19 de junho de 2009
O espaço da narrativa
A filha do teatro, mais recente projeto do Teatro do Pequeno Gesto se dá a ver através de três pontos que considero importantes de serem debatidos a respeito da prática teatral em qualquer época e contexto: a dramaturgia que não se configura apenas como suporte, mas como acontecimento por si só, o espaço cindido da encenação e as funções atoriais.
Começando pela dramaturgia, o texto conta a história de uma diretora de teatro que contrata uma garota de programa grávida para fazer uma cena de sexo explícito com seu parceiro em seu espetáculo teatral. A criança nasce prematura, de certa forma decorrente do tamanho envolvimento da mulher no espetáculo. A diretora resolve então adotar a criança e a mãe. A partir daí, a trama vai sendo tecida pela relação que se estabeleceu entre a diretora, a garota de programa e sua filha até o assassinato da primeira. O enredo é colocado perante o público através de diferentes perspectivas sobre as três mulheres, dados pelas atrizes (Fernanda Maia, Priscila Amorim e Viviana Rocha) na forma de monólogos que tem o objetivo de narrar a história e dar diferentes versões de um mesmo fato. Fica claro que a presente encenação pretendeu, como consta no programa da peça, mostrar-se como narrativa pura sobre esses fatos. A própria temática da história possui questões metateatrais em seu bojo, assim como o acontecimento que é experenciado em cena pelos espectadores é do âmbito da narrativa, que se concretiza através do discurso imagético e referencial da própria cena.
O espaço da cena, com cenografia despojada de Dóris Rollemberg, não é convencional, o que poderia dificultar bastante o desempenho das atrizes, e a aproximação que se pretende com o público. Esse espaço, a meu ver, parece ser um fator preponderante para a questão da representação nessa empreitada metateatral da Companhia: o que vemos é uma ambientação que remete a um espaço de instalação, como se ao entrarmos tivéssemos a sensação de estar num espaço de artes plásticas (a sala é chamada de “galeria 2”) mas que vai tomando a dimensão de espaço da cena narrada. Esse lugar se divide em dois espaços de atuação, concomitante em vários momentos, e embora uma plateia (disposta em arquibancadas) fique de frente para a outra, a cena se separa por um pano onde são projetadas as imagens das atrizes no momento de narração, constituindo assim uma espécie de dois palcos frontais. Enquanto uma atriz fala para determinada plateia, do outro lado sua imagem é projetada à outra plateia, imprimindo um desdobramento da ação. Esses mecanismos exigem muito do corpo da cena e do público. Visão que pode ir além da exposição, tornando-se um exercício árduo.
No que se refere à atuação, o registro que se opera em cena em A filha do teatro é bastante oportuno para a discussão sobre até que ponto o ator vive o personagem e até onde ele o narra, o apresenta da forma mais distanciada possível e ao mesmo tempo “dono” daquela versão. De acordo com as próprias palavras do diretor Antônio Guedes:
“(...) ele (o ator) não cria a ilusão de uma personalidade em cena, ele é mais um elemento narrativo através do qual a história se revela.”
Por esse viés a proposta cênica apresenta o dispositivo ator dentro do jogo onde se estabelecem convenções, em busca de uma maior autenticidade na narração, num limite, que permeia a cena inteira, entre vestir o personagem ou apenas narrá-lo ao espectador da forma mais distanciada possível. Penso ser bastante relevante essa problematização que se propõe em cena, visto abarcar discussões caras ao teatro, como os limites da ficção, o lugar do ator e sua presença híbrida, que lhe exige uma naturalidade na fala, postura, ação e relação com espectador e com o que se conta. Acredito que esse intuito da encenação foi alcançado em grande parte do tempo, devido exatamente ao cuidado conferido pelas atrizes e direção em dar forma às propostas acima mencionadas. Talvez o andamento da narrativa tenha se tornado um pouco arrastado, apático em certas horas. Essa apatia que senti em alguns momentos decorre de um tom monocórdio que de certa forma permeia a peça inteira, fazendo a atenção desviar-se em alguns momentos da narração. Mas acredito que isso se evidencia devido ao teor da proposta. O lugar que aquelas atrizes ocupam na cena pode parecer algumas vezes extremamente “vivo” e em outras demasiado “frio”. Pude perceber isso ao flagrar-me envolvida pela história ali contada, no sentido de acompanhar a trajetória do conflito, assim como pelas imagens e sensações desdobradas pela narração. Acredito que esses estados se devem também ao despojamento proposto pela cena. Um despojamento evidente inclusive na vestimenta das atrizes, que não se configuram como figurinos das personagens, mas como roupas do cotidiano das próprias atrizes, sendo este mais um fator que exige um olhar atento ao tipo de representação ali proposto.
Questões de natureza cênica expostas com devido cuidado e pesquisa, que visam novas propostas de olhar e atuar no espaço teatral.
Atuação e Espaço fechados
A peça Traição, um dos maiores sucessos da temporada teatral carioca de 2008 e prorrogada no Teatro solar de Botafogo até início de 2009, com direção de Ary Coslov, nos possibilita a chance de ver encenado um texto de Harold Pinter, dramaturgo inglês dos mais importantes da segunda metade do século XX. Com uma escrita muito singular, os personagens de Pinter encontram-se antes de tudo em um aqui e agora fechado, onde nem sempre podemos detectar com clareza o que querem, a que vieram ou o que farão; Constituem-se como forças que estão em um limite, como é o caso de Traição. O espaço fechado em que se encontram (um quarto, uma sala, etc.) é o lugar confinado que se constitui como um útero para esses personagens, um lugar de proteção que os fecha e que pretende fechar-se das forças que vêm de fora. Há sempre um embate de forças que não se dão a ver, num discurso habitado de ameaças, violações e revelações, num discurso combativo. Alguém quer acertar contas, alguém quer repassar o passado, esconder o presente; por meio dos diálogos quase coloquiais, que beiram o trivial e ganham força dramática através das pausas e silêncios — o não dito que é tão eloqüente quanto aquilo que é dito. Em Traição, essas “marcas” pinterianas estão todas presentes e o que se vê na encenação de Coslov é um cuidado com esses traços. Há um enorme respeito com essa dramaturgia, o que gerou uma montagem bastante convencional e sem riscos. Pois vamos à peça:
Traição conta a história de um triângulo amoroso formado por Robert (Leonardo Franco), sua esposa Emma (Isabella Parkinson) e o melhor amigo de Robert, Jerry (Isio Ghelman). Emma e Jerry foram amantes por muitos anos. A peça inicia com o reencontro do casal de amantes dois anos após o rompimento. Há a partir daí um recuo no tempo, pois a peça começa no ano de 1977 e vai até o ano de 1968. Dividida em nove quadros, que fazem com que o espectador se torne de certa maneira cúmplice daquela história de traição e amizade, o autor inglês magistralmente constrói uma cena inicial cheia de tensão e amargura em oposição ao final da peça, que é o início do adultério, cheia de paixão e certa doçura ingênua dos três personagens.
A encenação de Ary Coslov e atuação dos atores, bem como o cenário e figurinos é bastante tradicional e cuidadosa como já destaquei. Quando digo “cuidadosa” me refiro ao respeito evidente que percebo quase sempre em encenações de textos que são considerados clássicos do repertório teatral, principalmente quando se trata de uma escrita realista como o caso de Traição. Há uma preocupação em corresponder cenário com figurino, com a época, e com a atuação. Não acho que seja um problema, mas me pergunto por que leituras mais audaciosas não são experimentadas em nossos palcos. Assistir a Traição é sair do teatro com a sensação de ter visto uma peça bem costurada e sem surpresas. Começando pelo cenário, que busca dar visualidade àqueles ambientes descritos no texto, no sentido de cada nova contra - regragem, executada por Marcelo Aquino, ter a função de montar o espaço que logo decodificamos, por uma mesa de bar, uma cama, um sofá. A proposta de cenário de Marcos Flaksman busca ser funcional para as mudanças de ambiente a cada novo quadro da peça, assim como ser prática na montagem e construção visual. O que temos é uma espécie de estante que toma o fundo todo do palco, preenchida pelos adereços que vão dando vida àqueles espaços fechados propostos pelo autor. Não há uma criação conceitual de espaço, mas sim uma vontade de tornar visível e facilmente decodificável o novo ambiente, num novo ano, a cada novo quadro da peça. Como exemplo muito nítido dessa proposta é um enorme calendário que marca a passagem dos anos, destacando a passagem decrescente do tempo que orienta o desenrolar dos acontecimentos. Também os figurinos, de Rô Nascimento, têm esse cuidado com o resgate à época. Pensando nessa convenção como marca forte da presente encenação, percebi na trilha sonora um elemento que fugiu um pouco dessa visão mais fechada proposta pelo diretor. As músicas de Eric Clapton, nas versões originais, numa clara referência à época, culminando com o vigor de Jumping Jack Flash na cena final (início de tudo) trazem uma força e beleza que se destacam durante toda a encenação, por não serem registro de resgate (como os figurinos), mas de uma alusão que está fora daquele ambiente. Quando digo que a trilha fugiu dessa forma mais fechada é pensando em como ela me pareceu trazer uma leveza, uma não – ilustração dos estados em que se encontram os personagens, uma trilha que de certa forma mostra-se díspar no conjunto da encenação.
Mas o que considero mais relevante como discussão que o trabalho de Coslov pode gerar é o registro de interpretação. O que me parece ser o melhor da dramaturgia em questão, os espaços abertos pelas pausas e silêncios freqüentes, fica sublinhado pela atuação que busca apoio em fixar o olhar em um ponto, em gestos repetitivos e deslocamentos pelo palco que denotam uma marcação bem rígida e fixa. Fica claro que a importância do não dito, os silêncios e pausas, não é ignorada pela direção. Pelo contrário, é no enorme cuidado e destaque para esses registros que percebi uma atuação (principalmente Isabella Parkinson e Leonardo Franco) preocupada em demonstrar esses estados d’alma, sublinhando o que não precisaria ser sublinhado, mas sugerido. É no espaço fechado da sala, do bar, do quarto, que os personagens de Traição estão imersos. Este espaço fechado não significa uma limitação daqueles que estão em cena, ao contrário, acredito que é no confinamento estabelecido pelo autor (e respeitado pelo diretor) que os atores poderiam alçar vôos mais altos na infinita possibilidade que a relação dialógica, preenchida de pausas e silêncios, permite.
Acho que a encenação ganharia força e poderia dispensar qualquer outro elemento se focasse numa interpretação baseada na força da relação viva e intensa que o aqui e agora do teatro pode proporcionar para os atores e espectadores, focando na força das palavras de Pinter, no limite em que se encontram as personagens, na palavra que não é dita. Assim, outros registros poderiam ser descobertos, abrindo para outros sentidos, novas interpretações daquilo que é exposto. Um bom exemplo na peça é o momento em que os dois amigos se encontram depois que Robert já sabe do adultério. Marcelo Aquino, que faz um garçom italiano nessa cena, traz uma atuação leve e brincada, baseada na relação de olhar e troca com os dois atores. Não há uma construção caricata de um garçom italiano, lugar comum em que o ator poderia cair facilmente. Há sim um jogo dele com a situação, com os atores e com o que é dito. Essa atuação mais jogada difere da atuação de Leonardo Franco (principalmente nessa cena) que, numa preocupação de deixar claro o desespero em que se encontra o personagem, cai nos clichês do choro, intercalado do riso nervoso, de um bater de punhos na mesa, de uma agressividade abrupta, num esforço centrado em fazer sua atuação chegar a esses lugares propostos pela situação.
O que acho importante pensar e discutir depois de assistir a peça é o registro de atuação, que não abre possibilidades de novos ângulos para o olhar. Em contrapartida, na última cena, há um elemento de cena que aponta para outra direção: o espelho, que não se apresenta como cenário que ilustra, mas como um dispositivo de desdobramento da imagem de Jerry e Emma no início de tudo. Ampliou-se o lugar, não se limitou o confinamento, resultando na mais bela e pungente cena da montagem vencedora do Prêmio Shell de melhor espetáculo do ano de 2008.
terça-feira, 16 de junho de 2009
inveja dos anjos, uma crítica
A queima do passado e de seus vestígios, esse é o mote para “Inveja dos Anjos”, último espetáculo do Armazém Companhia de teatro, dirigida por Paulo de Moraes, com dramaturgia do próprio e de Maurício Arruda. É o retorno da companhia à criação dramaturgica, e como tal, essa árdua tarefa de apagar o passado acaba por na prática aparecer como o contrário: o emergir de milhões de idéias, temas e histórias que viviam nas cabeças do atores prontas para serem postas em cena.
Três amigos reunidos ao redor de um trilho de trem, pesados pelas marcas de um passado que não retorna, mas que de certa forma, impede que haja um futuro, pois mostra em seu caminho a possibilidade da fuga ou da volta. Esse é só o começo da trama que em tom de memória começa a trazer pequenos fios, tecidos, de estórias de personagens que aos poucos, passam pelos trilhos passando pela gente assim como passaram pelos três.
O cenário de também de Paulo e de Carla Berri é de uma simplicidade imponente, porque ao mesmo tempo que usa o espaço da própria fundição como cenário, projeta em cena um enorme trilho de trem que se bifurca entre o céu e o nada, entre o imaginário e o real, formando um espaço tão próximo como uma casa ou tão distante como um restaurante de beira de estrada.
Contribuindo com a cenografia está a iluminação de Maneco Quinderé de certa forma traz o elemento do real para a cena, por isso é comum se ver nela elementos como os faróis de um trem ou abajures, ou a lua, ou o próprio fogo, que traz a sensibilidade dos ambientes, sempre entre o azul, o claro e o vermelho.
A trilha sonora de Ricco Viana formada por artistas conhecidos do público em geral como Janis Joplin, Radiohead, entre outros, servem para reforçar a aproximação, o afeto, as relações que o espetáculo pretende criar, primeiro entre atores e diretor, depois entre personagens e por fim entre atores, personagens e o público, que se não chega a viver vidas parecidas, pelo menos projetam para si o que a cena transfigura, o que de alguma maneira, se revela numa cena sem emoção caso não seja projetada nenhuma estória sobre àquela narrativa.
As personagens todas envoltas por um laço de amizade, que por um lado une e por outro as prendem àquele lugar, dialogam entre si num tom quase sombrio até que algum presente retorna à cena e se pode ver a ação delas para que algo na vida mude para melhor, ou se torne pelo menos, num sofrimento válido de se viver. Quanto às atrizes é bom e quase repetitivo ressaltar o excelente trabalho de Patrícia Selonk como Cecília, que participa não só das melhores cenas, prova de que no processo da montagem foi quem apresentou as melhores idéias, como também o maior controle de seu corpo e dos efeitos dele na cena e nos espectadores.
De qualquer maneira é um espetáculo que deve nos pegar pela parte da emoção, se não o fizer provavelmente o julgamento de gosto será prejudicado, o que no meu caso em particular não aconteceu, achei um espetáculo de grande capacidade de alcance, de sensibilização e que cumpre uma das principais funções do teatro: entreter com emoção e inteligência.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
A Tropa de Domingos
A luz de Manéco Quinderé cria um ambiente sombrio e violento usando sombras e explorando bem os focos.
Com um texto pobre, diálogos fracos e uma encenação que beira a uma montagem de final de curso de teatro, pode-se dizer que Domingos Oliveira devería voltar a produzir seus bem sucedidos Confrontos conjugais.
Fernanda Oliveira
sábado, 13 de junho de 2009
ROCK'N ROLL
Escrito em 2006, o texto de Tom Stoppard traça um panorama do comunismo na Europa num período que vai da Primavera de Praga (1968) até a queda do Muro de Berlim (1989), através da relação entre Max, um professor marxista da Universidade de Cambridge e Jan, um estudante tcheco. Stoppard faz a ótima opção de discutir a ideologia comunista através do indivíduo, não se comprometendo com a reconstituição da história através dos grandes acontecimentos e do movimento das massas. Estes estão presentes, sejam como citação ou como imagens projetadas em vídeo, mas o interesse do autor está nas relações pessoais e na interferência que uma ideologia política pode causar nelas. E é isto que pode interessar o público, para além das referências culturais, nomes e datas, reconhecíveis ou não.
O ótimo elenco capitaneado por Otávio Augusto (Max), Thiago Fragoso (Jan) e Gisele Fróes (em papel duplo como Eleanor, esposa de Max e em interpretação inspirada como Esme, a filha adulta do casal) é ótimo e cumpre bem suas funções, com destaque especial para o trio de atores citados acima.
A cenografia de Sérgio Marimba, com “cacos” de ambientes que remetem a pedaços do muro de Berlim, é bela como execução, mas traz grandes problemas ao espetáculo, que a direção inexperiente, apesar de bem-intencionada, de Felipe Vidal e Tato Consorti não consegue resolver. O texto propõe uma profusão de ambientes (a sala de jantar de Max, o jardim de sua casa na Inglaterra, o quarto onde Jan mora em Praga, além de ruas e a platéia de um show de rock), o que obriga a intensa troca de cenários e movimentação dos módulos criados por Marimba. A direção tenta driblar o tempo gasto nessa operação com a projeção de vídeos que situam o espectador na passagem do tempo. Mas as trocas são tão demoradas que é necessário exibi-los em loops, sempre voltando ao começo e repetindo imagens já vistas. Isso tudo impede a fluidez do espetáculo e o alonga excessivamente, interrompendo a relação entre palco e platéia de forma nefasta. A direção poderia ter encontrado outra solução para as mudanças de cena, ou até optado por uma concepção cenográfica diferente. A incapacidade ou inexperiência dos diretores em relação a essa questão acarreta graves prejuízos ao espetáculo.
É preciso destacar ainda a parte musical. Num texto que se intitula “Rock’n Roll”, a mais contestadora e transformadora forma musical está presente na excelente trilha sonora proposta pelo próprio autor e nas constantes referências à banda Plastic People of the Universe, símbolo da resistência ao comunismo tcheco e a Syd Barret, idealizador e fundador do Pink Floyd, que rompeu com a banda após o estouro de “The Piper at The Gates of Dawn”.
Jan, o estudante interpretado por Thiago Fragoso, acredita que o rock pode mudar o mundo. Tom Stoppard parece nos dizer que se o teatro não muda o mundo, pode ao menos nos ajudar a pensá-lo.