sexta-feira, 5 de junho de 2009

A FILHA DO TEATRO

Em seu livro Teatro Pós-Dramático, Lehman situa um movimento que se intensifica à medida em que a civilização midiática amplia os seus domínios: o teatro "dramático" migra para as mídias − vide o naturalismo triunfante das novelas! − para em seguida apontar que "a chance do teatro pós-dramático não é a imitação da estética das mídias, nem a simulação, mas o real e a reflexão".
Antonio Guedes, já em 98, em seu artigo O Teatro é Coisa do Passado (Folhetim, no 0), discute, justamente, as diferenças que se podem extrair de uma análise comparativa entre a TV e o Teatro, como suportes da criação ficcional. "Vivemos um tempo em que é preciso repensar a especificidade do teatro" − escreve Guedes: "fazer teatro e repensá-lo podem ser considerados sinônimos".
Em A Filha do Teatro esse exercício de reflexão sobre o lugar específico do teatro se radicaliza. Já no programa da peça, Guedes traça uma breve cartografia dos elementos que tradicionalmente constituem o teatro para − a partir deles − construir uma cena em que esses elementos dispersos aguardam, ou ainda, provocam, de alguma forma, uma re-significação, uma nova articulação, a ser produzida pela leitura do espectador.
Há um enredo, extraído dos nove monólogos do texto de Luís Reis, compactado em três monólogos por Guedes, mas o que estará em jogo na cena de "A filha do Teatro" é − justamente − uma interrogação, uma discussão sobre as possibilidades, os limites, os impasses da narrativização da cena.
Há um único tema − o teatro − que se desdobra aqui enquanto objeto de uma "homenagem" (os elementos da tradição) e de uma problematização: como dar à narrativa a dimensão de acontecimento?
Um primeiro dispositivo apontado anteriormente, aciona a dispersão dos elementos da cena, um proposital apagamento de sua suposta identidade e provoca, já no ato da entrada do espectador no ambiente onde ocorrerá a encenação, uma singular estranheza: o corte e duplicação dos arcos do proscênio, repetidos em série, têm o poder de evocar a dimensão histórica da construção da "caixa-de-ilusões", a caixa-preta que acolheu o drama e suas lágrimas, evidenciando, simultaneamente, sua desconstrução − esses espaços vazados por onde o "real respira", para usar uma expressão de Novarina (Diante da Palavra). Sob os arcos de Rollemberg , que podem evocar ainda a imagem do esqueleto de um grande animal, gera-se um lugar intensamente marcado pela memória, em que uma cena contemporânea quer fazer sua inscrição. É ainda a partir da concepção cenográfica que podemos deduzir a relevância do "ponto-de-vista" do olhar do espectador, nos dois sentidos − espacial e subjetivo − do termo. O espaço da encenação é dividido por uma tela de voal, semi-transparente, ficando as plateias (arquibancadas) frente a frente, numa estrutura que se poderia chamar de especular.
Em estrita correlação com as duplicações em série da cenografia, há um outro operador fundamental da cena: a disjunção entre ator/personagem e ainda os cortes efetuados entre a voz/imagem/corpo das três atrizes/narradoras. A dimensão significante do texto, tomará a frente de uma suposta transmissão de "significados" entre o ator e o público: as técnicas de desdobramento e repetição, a construção dos espaçamentos entre as articulações sintáticas da cena, produzem o texto, a narrativa como mais um dos "objetos em exposição", para usar uma expressão de Lehman, evidenciando a "dimensão enigmática da linguagem".
Joga-se a partir do enredo com "uma diretora de teatro", "uma atriz de shows de sexo explícito" e "sua filha", que será adotada pela diretora. É a voz dessa diretora assassinada que inicia o relato − duplicada pela voz de uma segunda atriz. Parte-se, portanto, como em Brás-Cubas − de uma "figura do impossível" − a voz de uma personagem morta que narrará sua própria morte. Assim como narra-se o encontro com a atriz pornô que, contratada pela diretora, fracassa em sua "performance", uma vez transportada para o palco do teatro. Aqui é o próprio texto que repercute as aporias que não cessam de se colocar na cena: o que se pode dizer espcificamente no teatro? Que real é esse que causa a cena e é por ela causado?
Em A Filha do Teatro articula-se uma negatividade no sentido de uma rejeição do imperativo lógico linguístico da identidade. Não é por acaso, talvez, que no enredo se ocultem as figuras da morte e do gozo, que justamente apontam os pontos de furo na rede significante: o real, não se diz . O real é o impossível de dizer. Há um vazio na rede simbólica, que a arte não cessa de contornar,como diz Lacan,(Seminário 7) Para voltar a Blanchot: "Existe a questão, mas não o desejo de resposta; existe a questão, e nada que pode ser dito, mas justamente esse nada, para dizer."
A Filha do Teatro quer fazer cinema,diz Fátima Saadi, em conversa com alunos da UNI-RIO. A cena é cortada inúmeras vezes por imagens que são captadas em tempo real: as letras do texto lido por uma das atrizes são ampliadas na tela. O intervalo aqui é entre a letra e voz. O novo teatro privilegia a pulsação da imagem ou a materialidade da visão, ou seja, a aparição em oposição a ilustração(Picon-Valin). A atriz diz o seu texto: seu rosto cobre toda a tela ampliado pela lente da filmadora. O espectador mais uma vez se divide. como dividido ficou entre a cena que se dá à sua frente e a outra cena, que só pode vislumbrar de relance, atrás da tela de voal. Ou quando se descobre incluído na cena, buscando talvez o seu próprio rosto, entre os rostos dos demais espectadores da plateia, agora projetada na tela-espelho, que duplica o espaço de atuação: inquietante aparição de um "outro-eu " que me olha do palco.
Imagens replicantes, ecos, reverberações, espelhos contrapostos: proliferação dos significantes da cena, caminhos que se bifurcam cavados pelo deslocamento contínuo das vozes errantes que, sob os arcos da memória, não cessam de contornar algum lugar que se coloca como "um impossível de dizer". A dispersão, para Blanchot nos põe em contato com o "infinitamente movente". O dispositivo da repetição teria como função fixar alguns pontos de ancoramento que controlam a disseminação do sentido.
A imagem das três atrizes, ao final do espetáculo, aparece projetada sobre a trêmula tela de voal. A cena está vazia. Eis a cena que acabamos de ver: O Teatro aí reverbera, como ausência/presente.
O teatro é coisa do passado? Então retorna. O teatro é, ainda, teatro-por-vir...
O olhar redutor da mídia promete um saber sem furo, que atrai pelo vazio e pelo gozo imediato. A operação teatral, deixa um resto enigmático que reabre para o expectador a dimensão de um não-saber, portanto, a possibilidade de desejar. A Companhia do Pequeno Gesto aponta, ao longo de seus trabalhos, essa dimensão. A Filha do Teatro, parida entre as ruínas de um teatro em trânsito (para onde?) nos fala, incessante, desse desejo.


Annabel Albernaz

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